Volto a textos que apareceram na lista de correio electrónico do Pedro Aniceto, e que muito o devem ter agoniado no seu dever de as publicar.
1. "Em Portugal só houve um fascismo light"
A esta, o PA não resistiu e perguntou: qual é a sua régua para medir fascismos? Esqueçamo-nos, por exercício de discussão, do componente holocáustico do nazismo. Fica a haver grande diferença? Muito mais mortos de socialistas e comunistas nos campos de concentração hitlerianos, mas a partir de quantos mortos é que começa o fascismo? Para mim, de um único. O fascismo italiano até não foi tão assassino, não se compara aos milhares de mortos pela repressão franquista. Em Portugal, algumas dezenas: os mortos à fome e à doença do Tarrafal, Alex e Dias Coelho baleados em plena rua. E, já agora, o preso incógnito em Angola, na minha unidade de fuzileiros, entregue à Pide e cujos gritos só me permitiram o sono ao se extinguirem, não tendo eu compreendido logo que era porque o homem tinha morrido. E aqueles de cujo nome não me lembro agora, que se "suicidaram" lançados do terceiro andar da sede da Pide, de que o seu proprietário, o pobre "rei", quer fazer um hotel de luxo?
E as torturas? Afinal, hoje banais em Guantánamo, a privação do sono e a "estátua". Sabem o que isto é? Também há uma régua com medida para a tortura? Há torturas aceitáveis e inaceitáveis? E por onde andam hoje, neste pais de brandos costumes, São José Lopes, Sachetti, Passos, Cardoso e muitos mais? Talvez tenham filhos e sobrinhos a quem o 25 de Abril tenha dado a liberdade de poderem – e muito bem – despejar alarvidades na net, desde que haja sempre quem lhes responda, sem se acomodar com o pântano ideológico actual.
Também leio as desculpas ao salazarismo, como não-fascismo, por falta da encenação politica. Estupidez! Claro que a tivemos, com toda a encenação do império, mas também, nos anos 40, com as típicas paradas, Marcelo Caetano fardado à fascista, a Legião e a Mocidade Portuguesa, a exposição dos centenários (com a cumplicidade de "futuristas" como Almada). Se são filatelistas, vão ver os célebres selos "Tudo pela nação", desenhados pelo Almada. A diferença foi que tudo isto desapareceu nos perdedores, Alemanha e Itália, e Salazar compreendeu que os tempos tinham mudado. Mas, ainda em 1960, as comemorações henriquinas trouxeram a Portugal, num acampamento no Jamor e com muitos pagodes festivos, a nata das juventudes fascistas europeias.
Concluindo esta parte, vou ao essencial: fascismo é a violência contra os opositores mas também toda a castração da alma de um povo. Censura rigorosa e até estúpida, proibição da venda de livros que fazem parte do património cultural da humanidade, indoutrinação pela comunicação social oficial, demissões da nata dos professores intelectuais, proibição de exercício profissional de jovens licenciados, etc., etc. Isto é fascismo light?!
2. "Antes vivia-se melhor"
Esta é uma versão mais envergonhada do neo-salazarismo, que prefere omitir a politica, mas que ainda é mais facilmente desmontável, porque há números.
Vou falar só dos anos 60. Vivia-se muito bem! As pessoas demonstravam-no com os pés: engrossavam os novos bairros de lata de Lisboa e davam o salto para a França e a Alemanha. É claro que vivia muito bem, no obscurantismo, quem ia pela cartilha rural e de pároco de aldeia de Salazar: "se soubesses o que custa mandar, gostarias de obedecer toda a vida", "Deus, Pátria e família"; "o vinho dá de comer a um milhão de portugueses". Toda a gente da minha geração tinha estas coisas e muitos mais afixadas nas paredes dos nossos liceus.
Lia eu isto, no meu liceu, porque morava a dois passos. Mas lembro-me dos meus amigos residentes a 20 km da cidade que tinham que lá se hospedar porque, à hora do fim das aulas, já não havia camioneta para o Pico da Pedra. Neo-salazaristas de hoje, bem gostava de vos mandar para uma viagem ao passado!
E isto era para quem andava no liceu, obrigatoriamente só nas capitais de distrito. O resto, já esqueceram. Porque é que as campanhas rurais, depois do 25 de Abril, se centraram muito nas infra-estruturas básicas? Porque grande parte do nosso povo vivia em condições inimagináveis (que valia a pena dar a experimentar, em estilo "Quinta das celebridades", aos actuais escribas): sem electricidade, sem esgotos, sem telefone, água só do poço, caminhos de lameiro.
Os possíveis pais licenciados desses escribas provavelmente lhes dizem que, no seu tempo, tinham emprego assegurado. É verdade, mas esquecem-se de que, no meu tempo, esses estudantes universitários não ultrapassavam 20.000, hoje são quase 400.000. Isto chama-se democracia, também económica e social, e é por isto que o 25 de Abril ainda está no coração de muita gente.
Muito mais me apetecia escrever, mas não vale a pena gastar mais cera com tão ruins defuntos.
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