03 junho, 2006

Crime e castigo

Esta será, provavelmente, a nota mais polémica alguma vez aqui publicada. Vou falar da viagem do Papa à Polónia, em particular a Auschwitz-Birkenau. Despertou reacções opostas, entre os que, judeus incluídos, elogiaram a sua condenação explícita do Holocausto como uma monstruosidade e os que criticaram que ele tenha circunscrito essa monstruosidade a um "grupo de criminosos" que, pela demagogia e pelo terror, "abusou" do povo alemão "como instrumento da sua sede de destruição e de dominação".

É claro que esta discussão só emergiu por o Papa estar condicionado e em foco, em virtude da sua nacionalidade. Teoricamente, creio que não há razão para isto. Joseph Ratzinger era um cardeal alemão mas, a partir do momento em que passou a ser papa, não tem nacionalidade e não pode falar pelos alemães, como Kofi Annan não pode falar pelos nigerianos. São homens cuja pátria deve ser o mundo inteiro. Outra coisa é o Papa falar em nome da Igreja, e, neste caso, bem podia falar, finalmente, da responsabilidade da "diplomacia" de Pio XII em relação aos nazis.

Mas o que me interessa discutir é a questão da responsabilidade de um povo. Neste caso, o alemão, até nem é da minha especial simpatia, embora reconhecendo o que a cultura germânica deu de génios à humanidade, em todos os domínios. Qualquer juiz é treinado para avaliar a culpa e a responsabilidade individual. Os juízes de Nuremberga não tiveram qualquer dificuldade em condenar aquela colecção de monstros que vemos sentados no banco dos réus, até a rirem-se, assim como fizeram os juízes de Eichmann (que pena que também não Mengele!), Mas como se julga a culpa de um povo?

No caso alemão, até há muitos "indícios". Hitler foi eleito, já bem depois de publicar o Mein Kampf e de as suas SA se passearem pelas ruas em distúrbios. A resistência, praticamente limitada aos dois grandes partidos operários, foi massacrada sem que ninguém protestasse (lembram-se do célebre poema de Brecht?). A partir daí, foi vestigial, com a Capela Vermelha, com meia dúzia de resistentes no exterior, como Willy Brandt, e uma ou outra conspiração no interior, a mais conhecida das quais até com muitos aspectos marcantes de corporativismo militar. Saíam à rua multidões para vitoriar Hitler. Os alemães, na sua quase totalidade, aplaudiram um regime totalitário e criminoso, mas aqui deve-se ter cautela com o termo. Crime, para o homem comum, é matar ou roubar. Mas quantos alemães conheciam Auschwitz?

Agora é que me vou meter por caminhos apertados, pensando em Portugal. Quero deixar bem claro que me horroriza qualquer branqueamento do nosso fascismo. Começo logo por realçar que ainda uso o termo fascismo. É certo que com algumas características particulares, mas não tão particulares como se julga, quando se pensa apenas no nível quantitativo de monstruosidade da repressão. De facto, esse nível só se verificou na Alemanha e, de certa forma, em Espanha, bem como nos países ocupados pelo Japão (mas tenho dificuldade teórica em rotular de fascismo essa realidade tão distante da nossa cultura). O próprio fascismo original, italiano, foi um "mimo", se comparado com o alemão. De resto, os fascismos souberam cometer o grande crime de "genocídio moral e político" de milhões de pessoas, mais "recatadamente", como em Portugal, na Hungria, na Roménia, até no Brasil. Mas entendamo-nos bem: isto em nada diminui a responsabilidade criminosa desses regimes.

Ao longo de décadas, o fascismo português não foi matéria de responsabilidade nacional por agressão a outros povos, com excepção da exploração colonial. É questão interna, mas deixa de o ser com a guerra colonial. Tivemos Wiriamu, mas também incontáveis torturas e assassinatos pela Pide em África, para além das mortes que causámos em combate, da desculturação de populações inteiras transferidas para as aldeias estratégicas, do abafamento da cultura desses povos hoje nossos irmãos.

Mas é responsabilidade do povo português? Questão muito difícil. Eu bem gostaria de ver um presidente da República ir homenagear os mortos do PAIGC, do MPLA, da Frelimo e pedir perdão em nome do estado português, mas não obrigatoriamente do povo português.

No entanto, em relação a Portugal, também não vou automaticamente pela tese ratzingeriana do "bando de criminosos". Com o 25 de Abril, com o povo na rua (Lisboa e Porto, alguns milhares), é certo que muitos mais no magnífico 1º de Maio de 74, redimimo-nos das responsabilidades colectivas em relação ao fascismo.

Será que Delgado, como afirmam muitos, ganhou de facto as eleições de 1958? Tenho muitas dúvidas. Toda a gente que saía à rua a saudar o "venerando almirante" era obrigada? Todos os jovens da Mocidade Portuguesa eram uns oposicionistas precoces, ansiosos por se verem livres de coisas que até eram atraentes para jovens, como o campismo? Os milhares, é certo que poucos, activistas das CDEs e CEUDs de 1969 que percentagem eram da população? Mesmo no meio especial de elite que era a universidade, qual era a percentagem de votantes para as associações? E os milhões que iam à missa ouvir o padre rezar por Salazar pensavam que era uma instrumentalização dos católicos? Apoiavam Cerejeira ou apoiavam o bispo do Porto, o padre Mário da Lixa e o grupo do Rato? E os muitos milhares que foram fazer a guerra colonial estavam contra ela, ou apenas e legitimamente desgostosos com o afastamento da família e com os prejuízos profissionais?

Não me interpretem mal. O povo português não era apaixonadamente fascista, mas era-o, em boa parte, do ponto de vista do adormecimento, da passividade, da ignorância, afinal a grande "arte" do fascismo. Até pode ser considerado ofensivo para todos os resistentes dilui-los numa enorme massa de "antifascistas" por quem nunca dei.

No entanto, a concluir, regresso à minha questão essencial. Alguma coisa disto tudo justifica que o povo português, colectivamente, como nação, carregue com uma culpa colectiva pelos crimes do seu fascismo? Creio que não.

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