24 junho, 2006

Um poema para a botica

Já muito escrevi sobre o meu avô José da Costa, que, ainda há dias, em bonita cerimónia açoriana, retratei sentidamente, reconhecido à minha numerosa família por me ter designado como seu representante.

O prof. José da Costa era um portento de rica multidimensionalidade, aliando uma espantosa cultura, seriedade e exigência intelectual, a um grande prazer de viver e a um finíssimo humor.

Nessa evocação solene do meu avô, terminei dizendo: "E chego ao fim, depois de toda esta sentida evocação do meu avô, com uma queixa: não nos devias ter deixado o desafio desse exemplo, porque, nos tempos de hoje, já não somos capazes de te seguir."

Chegou-me agora às mãos uma carta invulgar, escrita aos 80 anos, 6 meses e 10 dias, precisos. Estava acamado com bronquite, mas isto não o limitou em relação a esta invulgar encomenda à botica. "Clique" na imagem, para a ampliar. Obrigado ao farmacêutico que teve o bom gosto de guardar esta carta e agora a fazer chegar à família.

Nota importante: esta carta-poema cómico, coisa em que ele era excelente, com um longo poema heróico-satírico publicado, a "Saltapíada", foi escrita por um quase cego, com um glaucoma gravíssimo, que tinha de usar uma forte lupa para ler ou escrever, palavra a palavra, quase letra a letra.

E outra nota: há na carta uma palavra obscura, pelingrinas. Era, para os grandes amigos, a alcunha do meu avô. Entre muitas coisas que ele fazia primorosamente, estava o canto sacro, com especial gosto por Palestrina. Um colega, provavelmente fracote mental, fazia a corruptela para pelingrinas, que se colou ao meu avô. Já agora, sobre o canto, uma anedota verídica. O meu avô, muito religioso, cantava frequentemente "a cappela" em missas solenes na matriz de S. Sebastião. Um dia, duas beatas vieram agradecer-lhe, muito sensibilizadas, ele ter evocado o seu, delas, mano Eugénio, recém-falecido. Então o meu avô não tinha cantado o "Humani generis"?

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