10 junho, 2006

O Código da Vinci

Escrever estas notas apenas uma vez por semana tem as suas vantagens. Vou acumulando diariamente uma lista de temas, depois escolho o que quero e não escrevo à pressão. Os escritos podem é perder oportunidade, como no caso de hoje. Já está esquecida a polémica sobre o Código da Vinci. Começa por ser muito significativo que a polémica, tardia, só tenha surgido em força com o filme e não com o livro, apesar de muito vendido. Tempos de menorização da leitura!

Não vi o filme, levando-me pelas muitas criticas negativas, mas li o livro. Claro que não como grande obra de literatura, mas com o mesmo interesse com que sempre li livros policiais, coisa menor mas relaxante – com pedido de desculpas a Patrícia Highsmith, Raymond Chandler e Simenon. Não gostam desta literatura? Também eu acho que aquilo está mal escrito (pelo menos na tradução portuguesa, ao nível da antiga colecção Vampiro), não há uma ideia que nos ensine qualquer coisa ou nos faça pensar e, no entanto, começada a primeira página, não houve minuto que não aproveitasse para devorar o livro. É um exemplo de como, muitas vezes, a técnica dá mais resultado do que a arte. Dan Brown tem uma técnica extraordinária para prender qualquer leitor, diria mesmo que para prender especialmente os leitores com alguma base cultural.

A Igreja católica reagiu, mesmo que em termos muito mais civilizados do que a polémica dos "cartoons" de Maomé. Reacção que, para mim, foi sinal de fraqueza. Para quem falava? Para os não crentes, não valia a pena; para os católicos, devia ter mais confiança na sua fé. Surpreendeu-me a atitude inteligente do Opus Dei português. Não são nada parvos, como se sabe.

Sobre tudo isto, não posso secundarizar um aspecto fundamental, o de um "espiritualismo" emergente ou reemergente, sempre sinal de insatisfação com os limites aparentes da racionalidade. E é curioso que sejam principalmente os não católicos a discutirem apaixonadamente se Cristo foi para a cama ou não, se havia apóstolos do sexo feminino e coisas do mesmo teor. Não consigo compreender bem o que é que isto interessa a quem não é crente. São coisas que deixo para os católicos. Reflicto sobre o cristianismo em termos civilizacionais, sobre a sua posição no mundo, mas só me interessam as suas posições com impacto político e social, como a moral sexual ou a bioética. O resto é a ganga dogmática da sua religião.

Vem a propósito um exemplo semelhante, o do Evangelho segundo Judas, coisa evidentemente gnóstica. Discutir o gnosticismo extravasa a religião e interessa-me. Mas melhor fariam muitos dos actuais "esotéricos" se estudassem um pouco. Entre muitas outras coisas, o gnosticismo é visceralmente antifeminino e anti-sensualidade. O que é que tem a ver com Madalena, como vi escrito?

Conheci ao longo da vida três períodos relativamente distintos em relação ao irracionalismo. Ao princípio, nos anos 60, era segmentado. Havia espíritas, astrólogos, ovnicrentes, tarotianos, rosacrucistas, etc., mas eram coisas isoladas. Nos anos 80, apareceu uma tendência sincrética de todas essas correntes, com afirmação vincadamente antirracionalista, talvez uma manifestação de um pós-modernismo nascente. O que vemos hoje é outra coisa. Como disse, parece-me uma busca de uma "nova atitude religiosa", mas não tradicional e com algum gosto por uma justificação racional pseudo-científica.

O novo esoterismo, à Dan Brown, é quanto baste, sem ser daquele que nos faz logo dizer "tolice", como os extra-terrestres nas aparições de Fátima. O secretismo refere-se a instituições que nos causam alguma interrogação mas que são reais, como o Opus Dei, a Maçonaria ou os arquivos secretos do Vaticano. Aproveitando-se do próprio secretismo dessas organizações, Dan Brown está à vontade para inventar o que quer, porque não temos informação para o contradizer.

Recordo-me, sem saber precisar, de ter lido qualquer coisa sobre "ética" da criação literária, como o não direito de aplicar a ficção a pessoas ou instituições reais. Em relação ao ensaio politico, social ou histórico, é óbvio; mas em relação à ficção, que toda a gente reconhece como tal? Parece-me caminho perigoso. Começa-se com estas limitações e acaba-se nas fogueiras de livros.

Em tudo há aspectos positivos. Disse-me ontem um aluno que, se não tivesse lido o Código da Vinci, nunca teria sabido o que é a série de Fibonacci.

Sem comentários: