Já muito escrevi sobre o meu avô José da Costa, que, ainda há dias, em bonita cerimónia açoriana, retratei sentidamente, reconhecido à minha numerosa família por me ter designado como seu representante.
O prof. José da Costa era um portento de rica multidimensionalidade, aliando uma espantosa cultura, seriedade e exigência intelectual, a um grande prazer de viver e a um finíssimo humor.
Nessa evocação solene do meu avô, terminei dizendo: "E chego ao fim, depois de toda esta sentida evocação do meu avô, com uma queixa: não nos devias ter deixado o desafio desse exemplo, porque, nos tempos de hoje, já não somos capazes de te seguir."
Chegou-me agora às mãos uma carta invulgar, escrita aos 80 anos, 6 meses e 10 dias, precisos. Estava acamado com bronquite, mas isto não o limitou em relação a esta invulgar encomenda à botica. "Clique" na imagem, para a ampliar. Obrigado ao farmacêutico que teve o bom gosto de guardar esta carta e agora a fazer chegar à família.
Nota importante: esta carta-poema cómico, coisa em que ele era excelente, com um longo poema heróico-satírico publicado, a "Saltapíada", foi escrita por um quase cego, com um glaucoma gravíssimo, que tinha de usar uma forte lupa para ler ou escrever, palavra a palavra, quase letra a letra.
E outra nota: há na carta uma palavra obscura, pelingrinas. Era, para os grandes amigos, a alcunha do meu avô. Entre muitas coisas que ele fazia primorosamente, estava o canto sacro, com especial gosto por Palestrina. Um colega, provavelmente fracote mental, fazia a corruptela para pelingrinas, que se colou ao meu avô. Já agora, sobre o canto, uma anedota verídica. O meu avô, muito religioso, cantava frequentemente "a cappela" em missas solenes na matriz de S. Sebastião. Um dia, duas beatas vieram agradecer-lhe, muito sensibilizadas, ele ter evocado o seu, delas, mano Eugénio, recém-falecido. Então o meu avô não tinha cantado o "Humani generis"?
24 junho, 2006
17 junho, 2006
Casa da Música
Ryuishi Sakamoto veio dar concertos a Portugal, no Porto e em Lisboa. Que horror, abrir as nossas principais salas de concerto a tal músico menor! "Muito mal", protestou um professor da Universidade do Porto, em carta enviada à direcção da Casa da Música. Tal casa deve estar vedada a música menor e "contra o bom gosto". Inacreditável!
Que pena que eu tenho de não o poder ter ouvido. Sou fã de Sakamoto. Descobri-o tarde, em situação contraditória, ao ver o magnífico "Feliz Natal, Mr. Lawrence". Actor banal, mas excelente autor da banda sonora, situação reproduzida em "O Último Imperador". Desde então, comprei o que pude: O "Grande amor", as bandas sonoras de "O pequeno Buda" e "O último imperador", "Lost child", "Raw life", e o magnífico "Casa", um álbum de um japonês que assimila e reinterpreta a bossa nova e António Jobim.
Não vou falar mais de Sakamoto, mas dos preconceitos que temos em relação à música. Clássica e ligeira? Fui vítima disto. Na minha juventude, nada "abaixo" de Beethoven ou Mozart. Lamentavelmente, com isto, só muito mais tarde apreciei, por exemplo, a grande qualidade musical dos Beatles e fiquei em condições de me maravilhar com aquela magnífica melodia, tão curta e tão simples, dos "Encontros Imediatos do Terceiro Grau". É inferior a outras célebres melodias ou motivos curtos, como o da quadragésima de Mozart, o motivo tão simples do concerto de violino de Beethoven ou as célebres quatro, só quatro, notas da sua sétima, tan tan tan tannnn?
Vamos clarificar águas e afastar desta discussão a música pimba. Ficam 99% de pop/rock e o pequeno resto de música erudita, Já vou discutir este adjectivo. Esses 99% são difíceis de definir. Vou tentar uma definição pragmática. É a música que enche os festivais, que mais se vende, as que os jovens descarregam para o iPod. Mas que variedade, quando a ouvimos! O meu filho ofereceu-me há tempos um disco de uma banda pouco conhecida, de grandes amigos seus. Ouvi-a sem preconceito e a minha conclusão, conhecendo os jovens, foi "porque é que eles, com este enorme talento, não vão estudar música?". Isto é meu critério. Ouço coisas excelentes, mas com má técnica. Sem que a corrijam, não a considero grande música. Fico a aguardar.
Espaço estanque entre a "música clássica" e aquela que não sei como chamar? A minha colecção de CD, e até de velhinhos vinil que ainda não tive tempo de copiar, não é má. Mas ninguém me obriga a deitar para o lixo as minhas preciosidades das canções francesas, das canções de cabaret berlinense (Kurt Weil era clássico ou ligeiro?), de zarzuelas, até algumas cantadas por Plácido Domingo.
O que é isto de música clássica? Os lieder de Schubert foram escritos para serem cantados no café. Os Strauss compuseram música que eram ouvidas entre conversas nos parques de Viena e que hoje têm as honras do célebre concerto de Ano Novo. O jazz era música de bar e os espirituais ou gospell música de pequenas comunidades religiosas. E se, no fim de um concerto, o maestro resolver dar, como pequeno extra, o can-can de Offenbach, creio que tanto a audiência como os músicos se divertirão bastante.
Para terminar, uma provocação. Estou a comprar discos de um bom músico português das últimas décadas. Imaginam quem? António Variações!
Que pena que eu tenho de não o poder ter ouvido. Sou fã de Sakamoto. Descobri-o tarde, em situação contraditória, ao ver o magnífico "Feliz Natal, Mr. Lawrence". Actor banal, mas excelente autor da banda sonora, situação reproduzida em "O Último Imperador". Desde então, comprei o que pude: O "Grande amor", as bandas sonoras de "O pequeno Buda" e "O último imperador", "Lost child", "Raw life", e o magnífico "Casa", um álbum de um japonês que assimila e reinterpreta a bossa nova e António Jobim.
Não vou falar mais de Sakamoto, mas dos preconceitos que temos em relação à música. Clássica e ligeira? Fui vítima disto. Na minha juventude, nada "abaixo" de Beethoven ou Mozart. Lamentavelmente, com isto, só muito mais tarde apreciei, por exemplo, a grande qualidade musical dos Beatles e fiquei em condições de me maravilhar com aquela magnífica melodia, tão curta e tão simples, dos "Encontros Imediatos do Terceiro Grau". É inferior a outras célebres melodias ou motivos curtos, como o da quadragésima de Mozart, o motivo tão simples do concerto de violino de Beethoven ou as célebres quatro, só quatro, notas da sua sétima, tan tan tan tannnn?
Vamos clarificar águas e afastar desta discussão a música pimba. Ficam 99% de pop/rock e o pequeno resto de música erudita, Já vou discutir este adjectivo. Esses 99% são difíceis de definir. Vou tentar uma definição pragmática. É a música que enche os festivais, que mais se vende, as que os jovens descarregam para o iPod. Mas que variedade, quando a ouvimos! O meu filho ofereceu-me há tempos um disco de uma banda pouco conhecida, de grandes amigos seus. Ouvi-a sem preconceito e a minha conclusão, conhecendo os jovens, foi "porque é que eles, com este enorme talento, não vão estudar música?". Isto é meu critério. Ouço coisas excelentes, mas com má técnica. Sem que a corrijam, não a considero grande música. Fico a aguardar.
Espaço estanque entre a "música clássica" e aquela que não sei como chamar? A minha colecção de CD, e até de velhinhos vinil que ainda não tive tempo de copiar, não é má. Mas ninguém me obriga a deitar para o lixo as minhas preciosidades das canções francesas, das canções de cabaret berlinense (Kurt Weil era clássico ou ligeiro?), de zarzuelas, até algumas cantadas por Plácido Domingo.
O que é isto de música clássica? Os lieder de Schubert foram escritos para serem cantados no café. Os Strauss compuseram música que eram ouvidas entre conversas nos parques de Viena e que hoje têm as honras do célebre concerto de Ano Novo. O jazz era música de bar e os espirituais ou gospell música de pequenas comunidades religiosas. E se, no fim de um concerto, o maestro resolver dar, como pequeno extra, o can-can de Offenbach, creio que tanto a audiência como os músicos se divertirão bastante.
Para terminar, uma provocação. Estou a comprar discos de um bom músico português das últimas décadas. Imaginam quem? António Variações!
10 junho, 2006
O Código da Vinci
Escrever estas notas apenas uma vez por semana tem as suas vantagens. Vou acumulando diariamente uma lista de temas, depois escolho o que quero e não escrevo à pressão. Os escritos podem é perder oportunidade, como no caso de hoje. Já está esquecida a polémica sobre o Código da Vinci. Começa por ser muito significativo que a polémica, tardia, só tenha surgido em força com o filme e não com o livro, apesar de muito vendido. Tempos de menorização da leitura!
Não vi o filme, levando-me pelas muitas criticas negativas, mas li o livro. Claro que não como grande obra de literatura, mas com o mesmo interesse com que sempre li livros policiais, coisa menor mas relaxante – com pedido de desculpas a Patrícia Highsmith, Raymond Chandler e Simenon. Não gostam desta literatura? Também eu acho que aquilo está mal escrito (pelo menos na tradução portuguesa, ao nível da antiga colecção Vampiro), não há uma ideia que nos ensine qualquer coisa ou nos faça pensar e, no entanto, começada a primeira página, não houve minuto que não aproveitasse para devorar o livro. É um exemplo de como, muitas vezes, a técnica dá mais resultado do que a arte. Dan Brown tem uma técnica extraordinária para prender qualquer leitor, diria mesmo que para prender especialmente os leitores com alguma base cultural.
A Igreja católica reagiu, mesmo que em termos muito mais civilizados do que a polémica dos "cartoons" de Maomé. Reacção que, para mim, foi sinal de fraqueza. Para quem falava? Para os não crentes, não valia a pena; para os católicos, devia ter mais confiança na sua fé. Surpreendeu-me a atitude inteligente do Opus Dei português. Não são nada parvos, como se sabe.
Sobre tudo isto, não posso secundarizar um aspecto fundamental, o de um "espiritualismo" emergente ou reemergente, sempre sinal de insatisfação com os limites aparentes da racionalidade. E é curioso que sejam principalmente os não católicos a discutirem apaixonadamente se Cristo foi para a cama ou não, se havia apóstolos do sexo feminino e coisas do mesmo teor. Não consigo compreender bem o que é que isto interessa a quem não é crente. São coisas que deixo para os católicos. Reflicto sobre o cristianismo em termos civilizacionais, sobre a sua posição no mundo, mas só me interessam as suas posições com impacto político e social, como a moral sexual ou a bioética. O resto é a ganga dogmática da sua religião.
Vem a propósito um exemplo semelhante, o do Evangelho segundo Judas, coisa evidentemente gnóstica. Discutir o gnosticismo extravasa a religião e interessa-me. Mas melhor fariam muitos dos actuais "esotéricos" se estudassem um pouco. Entre muitas outras coisas, o gnosticismo é visceralmente antifeminino e anti-sensualidade. O que é que tem a ver com Madalena, como vi escrito?
Conheci ao longo da vida três períodos relativamente distintos em relação ao irracionalismo. Ao princípio, nos anos 60, era segmentado. Havia espíritas, astrólogos, ovnicrentes, tarotianos, rosacrucistas, etc., mas eram coisas isoladas. Nos anos 80, apareceu uma tendência sincrética de todas essas correntes, com afirmação vincadamente antirracionalista, talvez uma manifestação de um pós-modernismo nascente. O que vemos hoje é outra coisa. Como disse, parece-me uma busca de uma "nova atitude religiosa", mas não tradicional e com algum gosto por uma justificação racional pseudo-científica.
O novo esoterismo, à Dan Brown, é quanto baste, sem ser daquele que nos faz logo dizer "tolice", como os extra-terrestres nas aparições de Fátima. O secretismo refere-se a instituições que nos causam alguma interrogação mas que são reais, como o Opus Dei, a Maçonaria ou os arquivos secretos do Vaticano. Aproveitando-se do próprio secretismo dessas organizações, Dan Brown está à vontade para inventar o que quer, porque não temos informação para o contradizer.
Recordo-me, sem saber precisar, de ter lido qualquer coisa sobre "ética" da criação literária, como o não direito de aplicar a ficção a pessoas ou instituições reais. Em relação ao ensaio politico, social ou histórico, é óbvio; mas em relação à ficção, que toda a gente reconhece como tal? Parece-me caminho perigoso. Começa-se com estas limitações e acaba-se nas fogueiras de livros.
Em tudo há aspectos positivos. Disse-me ontem um aluno que, se não tivesse lido o Código da Vinci, nunca teria sabido o que é a série de Fibonacci.
Não vi o filme, levando-me pelas muitas criticas negativas, mas li o livro. Claro que não como grande obra de literatura, mas com o mesmo interesse com que sempre li livros policiais, coisa menor mas relaxante – com pedido de desculpas a Patrícia Highsmith, Raymond Chandler e Simenon. Não gostam desta literatura? Também eu acho que aquilo está mal escrito (pelo menos na tradução portuguesa, ao nível da antiga colecção Vampiro), não há uma ideia que nos ensine qualquer coisa ou nos faça pensar e, no entanto, começada a primeira página, não houve minuto que não aproveitasse para devorar o livro. É um exemplo de como, muitas vezes, a técnica dá mais resultado do que a arte. Dan Brown tem uma técnica extraordinária para prender qualquer leitor, diria mesmo que para prender especialmente os leitores com alguma base cultural.
A Igreja católica reagiu, mesmo que em termos muito mais civilizados do que a polémica dos "cartoons" de Maomé. Reacção que, para mim, foi sinal de fraqueza. Para quem falava? Para os não crentes, não valia a pena; para os católicos, devia ter mais confiança na sua fé. Surpreendeu-me a atitude inteligente do Opus Dei português. Não são nada parvos, como se sabe.
Sobre tudo isto, não posso secundarizar um aspecto fundamental, o de um "espiritualismo" emergente ou reemergente, sempre sinal de insatisfação com os limites aparentes da racionalidade. E é curioso que sejam principalmente os não católicos a discutirem apaixonadamente se Cristo foi para a cama ou não, se havia apóstolos do sexo feminino e coisas do mesmo teor. Não consigo compreender bem o que é que isto interessa a quem não é crente. São coisas que deixo para os católicos. Reflicto sobre o cristianismo em termos civilizacionais, sobre a sua posição no mundo, mas só me interessam as suas posições com impacto político e social, como a moral sexual ou a bioética. O resto é a ganga dogmática da sua religião.
Vem a propósito um exemplo semelhante, o do Evangelho segundo Judas, coisa evidentemente gnóstica. Discutir o gnosticismo extravasa a religião e interessa-me. Mas melhor fariam muitos dos actuais "esotéricos" se estudassem um pouco. Entre muitas outras coisas, o gnosticismo é visceralmente antifeminino e anti-sensualidade. O que é que tem a ver com Madalena, como vi escrito?
Conheci ao longo da vida três períodos relativamente distintos em relação ao irracionalismo. Ao princípio, nos anos 60, era segmentado. Havia espíritas, astrólogos, ovnicrentes, tarotianos, rosacrucistas, etc., mas eram coisas isoladas. Nos anos 80, apareceu uma tendência sincrética de todas essas correntes, com afirmação vincadamente antirracionalista, talvez uma manifestação de um pós-modernismo nascente. O que vemos hoje é outra coisa. Como disse, parece-me uma busca de uma "nova atitude religiosa", mas não tradicional e com algum gosto por uma justificação racional pseudo-científica.
O novo esoterismo, à Dan Brown, é quanto baste, sem ser daquele que nos faz logo dizer "tolice", como os extra-terrestres nas aparições de Fátima. O secretismo refere-se a instituições que nos causam alguma interrogação mas que são reais, como o Opus Dei, a Maçonaria ou os arquivos secretos do Vaticano. Aproveitando-se do próprio secretismo dessas organizações, Dan Brown está à vontade para inventar o que quer, porque não temos informação para o contradizer.
Recordo-me, sem saber precisar, de ter lido qualquer coisa sobre "ética" da criação literária, como o não direito de aplicar a ficção a pessoas ou instituições reais. Em relação ao ensaio politico, social ou histórico, é óbvio; mas em relação à ficção, que toda a gente reconhece como tal? Parece-me caminho perigoso. Começa-se com estas limitações e acaba-se nas fogueiras de livros.
Em tudo há aspectos positivos. Disse-me ontem um aluno que, se não tivesse lido o Código da Vinci, nunca teria sabido o que é a série de Fibonacci.
03 junho, 2006
Crime e castigo
Esta será, provavelmente, a nota mais polémica alguma vez aqui publicada. Vou falar da viagem do Papa à Polónia, em particular a Auschwitz-Birkenau. Despertou reacções opostas, entre os que, judeus incluídos, elogiaram a sua condenação explícita do Holocausto como uma monstruosidade e os que criticaram que ele tenha circunscrito essa monstruosidade a um "grupo de criminosos" que, pela demagogia e pelo terror, "abusou" do povo alemão "como instrumento da sua sede de destruição e de dominação".
É claro que esta discussão só emergiu por o Papa estar condicionado e em foco, em virtude da sua nacionalidade. Teoricamente, creio que não há razão para isto. Joseph Ratzinger era um cardeal alemão mas, a partir do momento em que passou a ser papa, não tem nacionalidade e não pode falar pelos alemães, como Kofi Annan não pode falar pelos nigerianos. São homens cuja pátria deve ser o mundo inteiro. Outra coisa é o Papa falar em nome da Igreja, e, neste caso, bem podia falar, finalmente, da responsabilidade da "diplomacia" de Pio XII em relação aos nazis.
Mas o que me interessa discutir é a questão da responsabilidade de um povo. Neste caso, o alemão, até nem é da minha especial simpatia, embora reconhecendo o que a cultura germânica deu de génios à humanidade, em todos os domínios. Qualquer juiz é treinado para avaliar a culpa e a responsabilidade individual. Os juízes de Nuremberga não tiveram qualquer dificuldade em condenar aquela colecção de monstros que vemos sentados no banco dos réus, até a rirem-se, assim como fizeram os juízes de Eichmann (que pena que também não Mengele!), Mas como se julga a culpa de um povo?
No caso alemão, até há muitos "indícios". Hitler foi eleito, já bem depois de publicar o Mein Kampf e de as suas SA se passearem pelas ruas em distúrbios. A resistência, praticamente limitada aos dois grandes partidos operários, foi massacrada sem que ninguém protestasse (lembram-se do célebre poema de Brecht?). A partir daí, foi vestigial, com a Capela Vermelha, com meia dúzia de resistentes no exterior, como Willy Brandt, e uma ou outra conspiração no interior, a mais conhecida das quais até com muitos aspectos marcantes de corporativismo militar. Saíam à rua multidões para vitoriar Hitler. Os alemães, na sua quase totalidade, aplaudiram um regime totalitário e criminoso, mas aqui deve-se ter cautela com o termo. Crime, para o homem comum, é matar ou roubar. Mas quantos alemães conheciam Auschwitz?
Agora é que me vou meter por caminhos apertados, pensando em Portugal. Quero deixar bem claro que me horroriza qualquer branqueamento do nosso fascismo. Começo logo por realçar que ainda uso o termo fascismo. É certo que com algumas características particulares, mas não tão particulares como se julga, quando se pensa apenas no nível quantitativo de monstruosidade da repressão. De facto, esse nível só se verificou na Alemanha e, de certa forma, em Espanha, bem como nos países ocupados pelo Japão (mas tenho dificuldade teórica em rotular de fascismo essa realidade tão distante da nossa cultura). O próprio fascismo original, italiano, foi um "mimo", se comparado com o alemão. De resto, os fascismos souberam cometer o grande crime de "genocídio moral e político" de milhões de pessoas, mais "recatadamente", como em Portugal, na Hungria, na Roménia, até no Brasil. Mas entendamo-nos bem: isto em nada diminui a responsabilidade criminosa desses regimes.
Ao longo de décadas, o fascismo português não foi matéria de responsabilidade nacional por agressão a outros povos, com excepção da exploração colonial. É questão interna, mas deixa de o ser com a guerra colonial. Tivemos Wiriamu, mas também incontáveis torturas e assassinatos pela Pide em África, para além das mortes que causámos em combate, da desculturação de populações inteiras transferidas para as aldeias estratégicas, do abafamento da cultura desses povos hoje nossos irmãos.
Mas é responsabilidade do povo português? Questão muito difícil. Eu bem gostaria de ver um presidente da República ir homenagear os mortos do PAIGC, do MPLA, da Frelimo e pedir perdão em nome do estado português, mas não obrigatoriamente do povo português.
No entanto, em relação a Portugal, também não vou automaticamente pela tese ratzingeriana do "bando de criminosos". Com o 25 de Abril, com o povo na rua (Lisboa e Porto, alguns milhares), é certo que muitos mais no magnífico 1º de Maio de 74, redimimo-nos das responsabilidades colectivas em relação ao fascismo.
Será que Delgado, como afirmam muitos, ganhou de facto as eleições de 1958? Tenho muitas dúvidas. Toda a gente que saía à rua a saudar o "venerando almirante" era obrigada? Todos os jovens da Mocidade Portuguesa eram uns oposicionistas precoces, ansiosos por se verem livres de coisas que até eram atraentes para jovens, como o campismo? Os milhares, é certo que poucos, activistas das CDEs e CEUDs de 1969 que percentagem eram da população? Mesmo no meio especial de elite que era a universidade, qual era a percentagem de votantes para as associações? E os milhões que iam à missa ouvir o padre rezar por Salazar pensavam que era uma instrumentalização dos católicos? Apoiavam Cerejeira ou apoiavam o bispo do Porto, o padre Mário da Lixa e o grupo do Rato? E os muitos milhares que foram fazer a guerra colonial estavam contra ela, ou apenas e legitimamente desgostosos com o afastamento da família e com os prejuízos profissionais?
Não me interpretem mal. O povo português não era apaixonadamente fascista, mas era-o, em boa parte, do ponto de vista do adormecimento, da passividade, da ignorância, afinal a grande "arte" do fascismo. Até pode ser considerado ofensivo para todos os resistentes dilui-los numa enorme massa de "antifascistas" por quem nunca dei.
No entanto, a concluir, regresso à minha questão essencial. Alguma coisa disto tudo justifica que o povo português, colectivamente, como nação, carregue com uma culpa colectiva pelos crimes do seu fascismo? Creio que não.
É claro que esta discussão só emergiu por o Papa estar condicionado e em foco, em virtude da sua nacionalidade. Teoricamente, creio que não há razão para isto. Joseph Ratzinger era um cardeal alemão mas, a partir do momento em que passou a ser papa, não tem nacionalidade e não pode falar pelos alemães, como Kofi Annan não pode falar pelos nigerianos. São homens cuja pátria deve ser o mundo inteiro. Outra coisa é o Papa falar em nome da Igreja, e, neste caso, bem podia falar, finalmente, da responsabilidade da "diplomacia" de Pio XII em relação aos nazis.
Mas o que me interessa discutir é a questão da responsabilidade de um povo. Neste caso, o alemão, até nem é da minha especial simpatia, embora reconhecendo o que a cultura germânica deu de génios à humanidade, em todos os domínios. Qualquer juiz é treinado para avaliar a culpa e a responsabilidade individual. Os juízes de Nuremberga não tiveram qualquer dificuldade em condenar aquela colecção de monstros que vemos sentados no banco dos réus, até a rirem-se, assim como fizeram os juízes de Eichmann (que pena que também não Mengele!), Mas como se julga a culpa de um povo?
No caso alemão, até há muitos "indícios". Hitler foi eleito, já bem depois de publicar o Mein Kampf e de as suas SA se passearem pelas ruas em distúrbios. A resistência, praticamente limitada aos dois grandes partidos operários, foi massacrada sem que ninguém protestasse (lembram-se do célebre poema de Brecht?). A partir daí, foi vestigial, com a Capela Vermelha, com meia dúzia de resistentes no exterior, como Willy Brandt, e uma ou outra conspiração no interior, a mais conhecida das quais até com muitos aspectos marcantes de corporativismo militar. Saíam à rua multidões para vitoriar Hitler. Os alemães, na sua quase totalidade, aplaudiram um regime totalitário e criminoso, mas aqui deve-se ter cautela com o termo. Crime, para o homem comum, é matar ou roubar. Mas quantos alemães conheciam Auschwitz?
Agora é que me vou meter por caminhos apertados, pensando em Portugal. Quero deixar bem claro que me horroriza qualquer branqueamento do nosso fascismo. Começo logo por realçar que ainda uso o termo fascismo. É certo que com algumas características particulares, mas não tão particulares como se julga, quando se pensa apenas no nível quantitativo de monstruosidade da repressão. De facto, esse nível só se verificou na Alemanha e, de certa forma, em Espanha, bem como nos países ocupados pelo Japão (mas tenho dificuldade teórica em rotular de fascismo essa realidade tão distante da nossa cultura). O próprio fascismo original, italiano, foi um "mimo", se comparado com o alemão. De resto, os fascismos souberam cometer o grande crime de "genocídio moral e político" de milhões de pessoas, mais "recatadamente", como em Portugal, na Hungria, na Roménia, até no Brasil. Mas entendamo-nos bem: isto em nada diminui a responsabilidade criminosa desses regimes.
Ao longo de décadas, o fascismo português não foi matéria de responsabilidade nacional por agressão a outros povos, com excepção da exploração colonial. É questão interna, mas deixa de o ser com a guerra colonial. Tivemos Wiriamu, mas também incontáveis torturas e assassinatos pela Pide em África, para além das mortes que causámos em combate, da desculturação de populações inteiras transferidas para as aldeias estratégicas, do abafamento da cultura desses povos hoje nossos irmãos.
Mas é responsabilidade do povo português? Questão muito difícil. Eu bem gostaria de ver um presidente da República ir homenagear os mortos do PAIGC, do MPLA, da Frelimo e pedir perdão em nome do estado português, mas não obrigatoriamente do povo português.
No entanto, em relação a Portugal, também não vou automaticamente pela tese ratzingeriana do "bando de criminosos". Com o 25 de Abril, com o povo na rua (Lisboa e Porto, alguns milhares), é certo que muitos mais no magnífico 1º de Maio de 74, redimimo-nos das responsabilidades colectivas em relação ao fascismo.
Será que Delgado, como afirmam muitos, ganhou de facto as eleições de 1958? Tenho muitas dúvidas. Toda a gente que saía à rua a saudar o "venerando almirante" era obrigada? Todos os jovens da Mocidade Portuguesa eram uns oposicionistas precoces, ansiosos por se verem livres de coisas que até eram atraentes para jovens, como o campismo? Os milhares, é certo que poucos, activistas das CDEs e CEUDs de 1969 que percentagem eram da população? Mesmo no meio especial de elite que era a universidade, qual era a percentagem de votantes para as associações? E os milhões que iam à missa ouvir o padre rezar por Salazar pensavam que era uma instrumentalização dos católicos? Apoiavam Cerejeira ou apoiavam o bispo do Porto, o padre Mário da Lixa e o grupo do Rato? E os muitos milhares que foram fazer a guerra colonial estavam contra ela, ou apenas e legitimamente desgostosos com o afastamento da família e com os prejuízos profissionais?
Não me interpretem mal. O povo português não era apaixonadamente fascista, mas era-o, em boa parte, do ponto de vista do adormecimento, da passividade, da ignorância, afinal a grande "arte" do fascismo. Até pode ser considerado ofensivo para todos os resistentes dilui-los numa enorme massa de "antifascistas" por quem nunca dei.
No entanto, a concluir, regresso à minha questão essencial. Alguma coisa disto tudo justifica que o povo português, colectivamente, como nação, carregue com uma culpa colectiva pelos crimes do seu fascismo? Creio que não.
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