22 novembro, 2006

Gente típica (III)

Homens que souberam escolher

Há pessoas que nascem fadadas para um destino permanente, por fortuna ou por carreira e que, sabe-se lá porquê, subvertem a subordinação ao destino. Aqui vão dois exemplos.

O leiteiro da minha casa

Já eu era adolescente quando, em Ponta Delgada, o Loreto começou a distribuir o leite industrial pasteurizado, em garrafas. Antes, imperava o leiteiro, rua a rua, casa a casa, sentado à ilharga da carroça de cavalo, embrulhado na camisola grossa de lã de S. Maria e com o seu típico barrete. Tão típico como o indispensável cão, atado ao eixo da carroça. A carroça vinha prenhe de latas de leiteiro, de onde se vendia o leite em medidas de canada.

Leiteiro, filho de gente pobre, rendeiro de um cerrado de pasto para meia dúzia de vacas. Excepção era o leiteiro da minha casa, o Sr. Teves, filho de família rica. Visita diária matinal, a dar grito da Mercês, criada-minha comadre, que isto nos Açores estas relações são mistura de dependência e de afectividade.:"Senhora, é o leiteiro!". Respondia a minha avó: "Mercês, não é o leiteiro, é o Sr. Teves", ao que o Sr. Teves retorquia "Rapariga, é mesmo o leiteiro, Sr. Teves foi coisa de que não tive culpa, leiteiro foi decisão minha".

O taberneiro catedrático

A minha avó materna prezava muito a riqueza familiar de um primo emérito académico, o Prof. Sousa Júnior, catedrático da Faculdade de Medicina do Porto e um infecciologista que entrou na história da medicina portuguesa. O meu pai ainda o conheceu, mas em situação magnificamente diferente.

Nos sessentas (minha idade, será que me dá também para a maluqueira?) deu-lhe uma pancada e reformou-se antecipadamente das láureas académicas. Regressou à Terceira e às terras de família, minha também, no Porto Martins, onde se produzia vinho de velhas quintas de família. Despiu a beca e uniformizou-se com camisa de linho rústico sem colarinho, suspensórios e chinelos de ourelo. Abriu uma taberna e gastou o resto da vida a vender vinho a copo de três, cavaqueando com campónios e pescadores. Há açoriano que não tenha um grão de loucura? São séculos de grande consanguinidade e a genética cobra o seu preço, para o melhor e para o pior.

Há tempos, um amigo comum propiciou-me o encontro com um primo meu distante, herdeiro directo de Sousa Júnior. É hoje um médico bem sucedido, carreira a sério, mas acabámos por ficar com a provocação mútua: será que ainda vamos fazer sociedade para abrir uma taberna no Porto Martins? Nesse momento, foi ocasião de riso. Daqui a uns anos, não digo que será só riso... Ainda por cima, o JAG e eu partilhamos outra paixão, bem açoriana, a da marinha. Taberna no Porto Martins com fotografias da Sagres e uns copos com velhos marinheiros? E em sociedade com o Luís Brum, quase familiar por via das "amigas" Maias, para bom apetrechamento de vinho dos Biscoitos?

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