28 fevereiro, 2007

Os jornais gratuitos

A tão falada Web 2.0, a do acesso gratuito à informação e aos utensílios informáticos, tem também um análogo mais convencional. Refiro-me aos jornais gratuitos, que me parecem estar com franco sucesso. Passo com frequência, de manhã, num ponto quente da sua distribuição, Entrecampos. Quase que me sinto mal e tenho de fazer um sorriso ao recusar o jornal, aceite por todos os automobilistas à minha volta.

Já tive curiosidade de ler um ou outro. A qualidade deixa a desejar, aquilo parece um simples boletim da Lusa, não há nada de opinião, a publicidade, obrigatoriamente, ocupa a maior parte do espaço. No entanto, pergunto-me se é legítimo criticá-los.

Há ainda três ou quatro anos, os meus alunos universitários não liam um jornal. Não é só impressão de companheiro de cafetaria, é resultado das respostas que me dão quando os interrogo sobre notícias de grande interesse científico publicadas nos jornais.

Hoje, as mesas da cantina ficam cheias dos jornais gratuitos que, todas as manhãs, são postos numa caixa à porta. É leitura de pouca qualidade, mas o pouco não é melhor do que o nada, a menos que o pouco seja intoxicante, o que não me parece ser o caso? Quantos jovens nunca iriam descobrir, com o tempo e a sua evolução cultural, as maravilhas da música erudita se não andassem, entretanto, a ouvir no iPod coisas sem qualquer qualidade?

27 fevereiro, 2007

"Loteamentos partidários"

Escreve hoje Vital Moreira, lapidarmente, no Público, logo a começar a sua crónica, "Loteamento partidário":
"Há poucos dias, o público noticiava que a empresa municipal Gebalis, que gere o parque de bairros municipais de Lisboa, tem perto de 30 trabalhadores do PSD, cuja secção partidária é coordenada pelo próprio vereador do pelouro competente para essa área, trabalhadores esses recrutados pelo mesmo vereador quando foi director da referida empresa."
Será que este meu caro amigo já começa a ter sinais precoces de demência, como eu, a inventar coisas delirantes, ou então é tudo à nossa volta que está a ficar demente?

Caindo no sério, continuei a ler o seu artigo e parei neste parágrafo.
"Por isso, impõe-se a revisão do sistema de governo municipal, de forma a separar os papéis da maioria (que deve governar sob sua inteira responsabilidade) e da oposição (que deve escrutinar e controlar a câmara municipal), bem como a reduzir a dimensão dos executivos municipais (há alguma razão para Lisboa ter quase 20 vereadores?!), a restaurar a função fiscalizadora da assembleia municipal (que o actual sistema praticamente esvazia), tudo isto, porém, sem substituir a situação actual por uma espécie de superpresidencialismo municipal (venha o diabo e escolha...), com a "atrelagem" da eleição da assembleia à eleição do presidente da câmara, como propõem tanto o PS como o PSD".
Se não estou em erro, parece-me que VM está a transpor para o nível municipal o paradigma estatal. Um executivo que governa em maioria, um legislativo/parlamentar que controla. "Checks and balances", muito bem. Simplesmente, como também subentendo do que VM escreve, a assembleia municipal não está formatada para isto. Teria gostado que o Vital tivesse ocupado algumas linhas com uma nova proposta. Fica para a próxima? Ou, ao menos, para conversa entre amigos?

A loja

Desde a remodelação do Público, havia qualquer coisa a "trabalhar-me", sem eu conseguir perceber. Hoje, eureka, lembrei-me: o nome do segundo caderno, P2. É nome que não lembra ao diabo! Isto é, ao padrinho da P2.

25 fevereiro, 2007

O novo Público


O Público de hoje traz uma notícia sobre um conflito à volta de obras no convento medieval franciscano de Viana do Castelo, actualmente, se não estou em erro, ocupado pelo Instituto Politécnico. Acompanha a notícia com a imagem que reproduzo, completa aldrabice. A fotografia é de um ícone vianense, a igreja neobizantina, oitocentista, de S. Luzia (um mamarracho, diga-se, a imitar outro mamarracho, o Sacré Coeur). Volto a lembrar-me do que disse numa nota anterior, sobre a fotografia da fragata. Nessa altura, responderam-me que as ilustrações de um jornal são só evocativas, a criar ambiente. Não é verdade. Quem nunca foi a Viana e vir a imagem que reproduzo, vai àquela igreja e fica a "saber", para sua informação, que é a de S. Francisco.

Tabloide?

Receio que a remodelação do Público ainda venha a ser história com pano para mangas. Reparei há dias em coisa que pode parecer um pequeno pormenor, mas logo na primeira página. Na chamada de atenção para uma notícia interior, uma grande foto de um militar de camuflado, sabe-se lá quem, e um pequeno texto a dizer que o príncipe Harry de Inglaterra, filho do herdeiro da coroa e terceiro na linha da sucessão, vai em missão para o Iraque.

Pior é o título da fotografia da primeira página: "Filho de Diana vai para Bassorá" . A Caras não diria melhor. Mas melhor ainda me disse o meu vendedor de jornais, com quem muitas vezes converso sobre a primeira página: "pois é, parece que o rapaz é só filho da mãe!"

Nota à margem - A propósito da fotografia, lembrei-me de um caso já antigo, de um protesto meu a um jornal. Numa evocação histórica sobre o 25 de Abril, contava-se o caso da "Roberto Ivens" e daquele momento decisivo em que ela apontou as peças para o céu, depois de neutralizado o comandante. Lá vinha a fotografia, da fragata no Tejo, frente ao Cais das Colunas. Simplesmente, era uma fragata Meko, das adquiridas muitos anos depois. O jornal deu-me uma desculpa esfarrapada e recusou admitir o erro. Coisas da nossa imprensa!

Coisas de antigamente...


(Público, 24.2.2007)

24 fevereiro, 2007

Uma pequena correcção

Na sua coluna habitual de sábado, no Público, São José Almeida, que leio sempre com muito agrado, debruça-se sobre um tema que já tratei aqui: o eventual veto do PR à lei a despenalização do aborto. Mas comete um erro, significativo, ao afirmar que, se a lei for vetada, o veto só será ultrapassado por nova votação parlamentar com maioria de dois terços. Não é correcto. Segundo o artº 136º da Constituição, o PR é obrigado a promulgar a lei em decorrência de segunda aprovação pela maioria absoluta dos deputados em exercício de funções, o que fica muito aquém dos dois terços.

Quem é o autor?

Li no jornal uma frase que (com ligeiras variantes) sempre me deliciou e que sempre tive como regra de escrita. "Escrevi esta carta mais longa do que é costume, mas não tive tempo para a escrever mais curta". O meu avô, emérito humanista, sempre me disse que era do Pe. António Vieira. O jornal diz que é de Pascal. Alguém me informa?

Há cada autarca...

Não vou discutir a reorganização das unidades de urgência. É questão técnica complexa, mesmo para quem, como eu, tem formação médica de origem. No entanto, à primeira vista, não deixou de me impressionar o mapa que apareceu no Público de 22.2.2007. Poderão fechar 15 urgências, todas elas muito próximas de outras que se mantêm. Em contrapartida, criam-se 26 novas urgências, principalmente no interior, com destaque para o Alentejo, com grande dispersão humana.

Sobre cada caso, o jornal ouviu em paralelo os técnicos e um autarca. É sobre isto que me apetece um comentário trágico-cómico. Compreende-se que, politicamente, os autarcas não queiram arrostar com os descontentamento dos seus eleitores, mas há "mimos" que podiam ser evitados. "A nossa população está habituada a ter urgência permanente". "Temos no concelho um complexo químico". Mas surrealista é a justificação de um autarca de Peniche: "temos uma importante comunidade piscatória". E porque não uma comunidade de jogo da sueca, factor de risco de eventuais conflitos físicos e de cabeças partidas?

23 fevereiro, 2007

Recordando, em homenagem


Associo-me hoje à recordação do Zeca Afonso, no 20º aniversário da sua morte, contando uma história que se repetia muitas vezes. Ele era participante habitual nas noites de convívio das associações de estudantes do meu tempo. Já agora, refiro que, ao contrário do que foi uso, a meu ver criticável, no pós-25 de Abril, não era à borla. Também o pagamento era uma forma de solidariedade, porque o Zeca Afonso estava limitado nos seus proventos, por perseguição política.

Como presidente da associação de medicina, várias vezes o contactei. A resposta era logo afirmativa, mas com uma condição: "é pá, desde que não me peçam para cantar aquilo que eu não posso, porque a sala deve estar cheia de pides". No fim, invariavelmente, um coro de "vampiros, vampiros". Ele, lembro-me tão bem, coçava a cabeça, seu gesto típico, olhava para mim como que a pedir que eu interviesse, mas logo a seguir, podia ele lá resistir, saía o "eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada". Ele também sabia que, se os pides quisessem chatear (mas não eram tão parvos como agora se diz, a menorizar o seu perigo), tanto seria a ele como a mim.

Também outra coisa, talvez mais importante. Nunca o conheci estreitamente, muito menos posso dizer que fosse seu amigo. Mas conheci-o o suficiente para ter a certeza de que era, até ao fundo da alma, um homem bom!

Choque tecnológico

Ou oito ou oitenta: competitividade por salários baixos, para chinês ouvir (eles que têm salários altíssimos...), ou então discurso grandiloquente do choque tecnológico. No meio de todo este ruído politico, ainda me dá grande prazer ler opiniões racionais, objectivas, sensatas. Um exemplo foi o que disse Campos e Cunha ao Público (4.2.2007):
"Não bate a bota com a perdigota, andarmos a falar de salários baixos eao mesmo tempo de choque tecnológico".
(...) "Se calhar o mal não está naquela frase, está em ter-se andado a propagandear o choque tecnológico. A evolução tecnológica dos países é por definição lenta, logo é o contrário de um choque. Do meu ponto de vista há nesta ideia uma contradição nos seus próprios termos."
Localizando esta ideia na educação superior, centro por excelência da alimentação directa e indirecta (formação de quadros) da tecnologia, há como que um teorema. "Quando a economia tem uma solicitação a prazo de x anos, a educação superior responde a prazo de x+n anos". Qual é o valor de n?

Quando se fala em milagres de choque tecnológico, vêm logo os exemplos da Irlanda e da Finlândia. Vejamos alguns dados (Eurostat, 2006) que julgo serem relevantes.


PortugalIrlandaFinlândiaUE (27)
ID % PIB0,811,253,481,84
Empresas % despesa ID31,758,769,354,5
Formados em C&T % empregos23,444,653,541,9


Comecemos pela Irlanda. Repare-se que não se afasta flagrantemente da média da UE. Completamente diferente é o caso da Finlândia. A meu ver, há uma diferença importante. A Irlanda teve um choque tecnológico, a Finlândia um choque educativo (repare-se na terceira linha) em boa harmonia com o investimento tecnológico.

Simplesmente, o choque tecnológico irlandês é caso único. Conheço melhor um sector de grande sucesso, o da biotecnologia. O progresso dependeu essencialmente da instalação de sucursais de grandes multinacionais, mas por factores que nos são alheios: uma hora de distância em ferry de Liverpool, domínio generalizado da língua inglesa, grandes relações entre as empresas de ambos os países, uma importante e economicamente importante comunidade de origem irlandesa nos EUA. Só a seguir é que vieram as correspondentes mudanças no sistema de educação superior, que garantiram a sustentabilidade do choque.

O caso finlandês também não pode ser bem entendido sem a enorme importância de coisa muito "simples", Nokia. Mas, muito mais importante, e para concluir, o choque educativo.

21 fevereiro, 2007

Memento II

Lembrei-me a seguir de uma coisa que talvez não conheçam. Quando se entra no cemitério de Ponta Delgada, logo a primeira campa à esquerda é a de Antero. Simples, um pequeno obelisco e uma lápide com uma quadra magnífica de João de Deus.
Aqui jaz pó, eu não, eu sou quem fui,
Raio animado dessa luz celeste
À qual a morte as almas restitui,
Restituindo à terra o pó que as veste.

Memento

Não em termos de calendário civil, mas sim de calendário litúrgico, a minha mãe morreu há um ano, em quarta feira de cinzas. Julgo que, para religiosos tão sabiamente profundos como foram os meus pais, perante cuja grandeza espiritual se curva humilde um incréu como eu, há dois grandes dias para se morrer, a sexta feira santa e a quarta feira de cinzas.

Memento, homine, qui pulvis est et in pulverem reverteris.

Isto é só cultura cristã? Ou melhor, a cultura permite adjectivos?

O espaço Público

Estou com "mixed feelings" em relação ao meu jornal desde há muito anos, o Público. Como já aqui escrevi, gosto do novo aspecto, mas, pessoalmente, sinto-me mais clássico, mais leitor a sério, com um jornal à antiga.

O que hoje me faz escrever uma breve nota é um receio, que me parece já confirmado pela prática. O espaço de opinião provavelmente vai ser ocupado exclusivamente pelos colunistas contratados. Isto vai contra a nossa velha tradição dos artigos enviados pelos leitores, muitas vezes bem mais originais e interessantes do que a escrita a tender para o rotineiro de quem é obrigado a uns tantos milhares de caracteres por semana.

Já me era bem difícil fazer passar um artigo de opinião. Com o novo formato e fazendo as contas às páginas e aos compromissos com os colunistas contratados, parece-me que passará a ser impossível.

Espanha, aqui tão perto

Uma nota anterior transcrevia algumas observações de Miguel Sousa Tavares sobre a nossa diferença com a Espanha. O registo era jocoso, mas parece-me que justifica uma discussão mais a sério, embora eu não tenha credenciais para isso. Vivemos décadas de fascismo comum, de miséria, de atraso. Porque é que hoje somos tão diferentes?

Vamos às origens, que logo nos distinguem. É verdade que tivemos uma matriz comum, celtibérica (Viriato é tão português como espanhol), romana, visigótica, moura. Há uma pequena diferença, que não sei discutir, a influência sueva, só em Portugal. Diferença mais marcante é que a reconquista começa na actual Espanha muito antes da que ocorre no actual Portugal. Creio que isto significa que, nessa época, as estruturas sócio-políticas feudais específicas da reconquista começam a afirmar-se muito mais em Leão, sendo apenas um reflexo periférico no território que hoje é Portugal.

Por outro lado, para desgosto do nosso orgulho, parece-me evidente que a resistência moura sempre foi muito mais forte em relação a Leão-Castela do que a Portugal. Os míticos reis mouros de Ourique devem ter estado muito longe, em poder, do que Afonso VI defrontou na tomada de Toledo.

Saltando séculos, outro aspecto essencial, o da construção do estado. Emparelharam, D. João II e os reis católicos, mas estes mantiveram a herança, enquanto que o nosso D. Manuel voltou a favorecer a nobreza. Mais importante, a nova Espanha unificada tem uma dimensão europeia, com a ligação à casa de Áustria.

A seguir, a expansão. Também aí uma grande diferença. Nós fomos descobridores e comerciantes. Só nos aventurámos nas bandeiras brasileiras e um pouco em Angola. Os espanhóis foram conquistadores. O nosso império foi de caricatura, uma pequena faixa costeira, o espanhol foi o de todas as américas, do ouro e da prata. Lembro aqui uma curiosidade, coisa que me dizia um grande amigo espanhol. "Os portugueses basearam-se em fidalgos da corte, nós em aventureiros duros, principalmente gente da seca Estremadura".

Outro grande salto para os tempos agónicos dos dois fascismos. No fim dos anos sessenta, nós estávamos apantanados na guerra colonial, os espanhóis conseguiram que Franco, apesar de provavelmente muito mais estúpido do que Salazar, abrisse portas em vida a um "marcelismo" do Opus Dei que, cá, foi uma coisa patética.

Tudo isto é charla de amador. Importante é ir a Madrid ou a Barcelona, ver e pensar. Ou, mais proximamente, ver no dia-a-dia o que é hoje o domínio espanhol da nossa vida quotidiana. Não é preciso saber ler os suplementos económicos dos jornais. Espanha, não há nada com quem eu tenha uma tão óbvia relação de amor-ódio!

18 fevereiro, 2007

LOL!!!

Viram o gato fedorento, que acabou há minutos? É imperdível, ainda há grande humor português e inteligente. LOL, ou, em português, à LA-C, RACC, ri-me alto como o c... Do programa de hoje, palpita-me que há dois momentos que vão dar milhares de visionamentos no YouTube. Primeiro, o jantar surrealista de novela brasileira em que o gay anuncia o seu namoro. Depois, a coisa mirabolante do padre: "deixem-me ir já, porque acabei de comungar e depois pode-me cair mal".

Fuge, ministre!


Fuge, vá depræssa, como se diz na minha térra. O ministre Manel Pinhe que s'apræsse. Na China, ficou por umas bocas, mas é importante competir com este anunce publicado em todo o mündo. Atão samos piores qu'a macedonhos, quê julguê qu'eram só salada russa?

Nota – a partir de agora, todas as notas jocosas serão em transliteração de pronúncia da minha terra. Assim, ficarão sempre a saber se estou a escrever a sério ou a brincar. Mas eu sei lá quando é que escrevo a sério ou a brincar!

Miguel Sousa Tavares

Não conheço pessoalmente Miguel Sousa Tavares (MST), mas tenho uma grande relação com ele, como leitor. Relação ambígua. Não vou falar do escritor, do "Equador", seria coisa longa. Agora vou falar do MST jornalista. Não gosto do MST arrogante, sobranceiro, com tiques de "menino bem". Mas acho piada à sua verve, à sua acutilância, e admiro a sua coragem, ao lutar, muitas vezes, contra o mais fácil e confortável.

Reproduzo parte da sua crónica no último Expresso, "Prova de vida". Um mimo de sabor queiroziano (e lá volto a pensar no "Equador", queirozianismo muito mal conseguido, a meu ver, mas fica fora desta conversa).
"Façam para aí umas sondagens, perguntem aos portugueses na rua, e eles estão todos de acordo com tudo o que lhes cheire a 'modernidade': os fumadores agradecem que os proíbam de fumar em todo o lado; os pacientes das filas de trânsito em Lisboa estão de acordo com os novos radares municipais que os vão explorar até ao tutano, nos raros locais e ocasiões em que possam circular a mais de 50 kms/hora; os gordos agradecem que lhes acabem com o queijo da Serra amanteigado e se preparem para fazer o mesmo às horríveis sardinhas assadas; os "pacientes" (extraordinária palavra!) do colesterol estão reconhecidos a quem determinou que o azeite tem de ser todo igual, de marca, inviolável e sem sabor; os sedentários suspiram por um decreto que os obrigue a correr três quilómetros por dia, como o engenheiro Sócrates; os noctívagos estão mortinhos pelo dia em que só lhes sirvam pirolitos e sumos naturais nos bares; os caçadores nada mais desejam do que a hipótese de se curarem clinicamente desse instinto homicida que os leva a querer matar animaizinhos que voam ou correm por essa natureza fora; os doentes do futebol querem que os castiguem de cada vez que chamarem nomes à mãe do árbitro ou rogarem pragas ao presidente do outro clube. Todos, se perguntados, vão querer um país novo, livre de pecado e vício, de cheiro a sardinhas assadas ou jaquinzinhos fritos, um país assim... como Bruxelas, essa cidade empolgante. Só escapam os casinos - que esses são modernos, cheios de «glamour», «design», cultura, «soshi», «smokings», «jackpots» e «nouvelle cuisine». Os portugueses adoram que os flagelem, que os proíbam, que os controlem, que os persigam, que tomem conta deles, como nos bons velhos tempos do senhor de Santa Comba.

É por estas e por outras que eu cada vez admiro mais os espanhóis. Disseram-lhes que tinham de adoptar os horários e hábitos de vida europeus e eles continuaram com a sua sesta. Quiseram-nos proibir de fumar em todo o lado e eles não levaram a sério. Deram-lhes uma lei do aborto igual à que nós tínhamos e eles levaram-na a sério e não deixaram que o lóbi dos médicos católicos a boicotasse. Ousaram sugerir a proibição dos touros de morte e eles responderam "nem se atrevam!" E, com tanta resistência pacífica e cívica, a Espanha é hoje um dos mais modernos e civilizados países do mundo. Continuando fiel à sua identidade e orgulhosa dela. Um país que não respeita as suas tradições não presta. Um país que não res¬peita os seus hábitos e a sua cultura, não existe: é assim uma espécie de alforreca, sem cor, nem cheiro, nem identidade. Uma Maria vai com todos."
É claro que tudo isto tem margem para discussão séria, mas é difícil darem-me esta margem, os novos puritanos, sem me irritarem e fazerem vir ao de cima o espírito de criança reguila. Falem-me em politicamente correcto e eu dou logo um grande traque em dó maior.

17 fevereiro, 2007

Ética republicana


Uma das coisas mais bonitas de domingo passado. Cincinato terá gostado. Não me lembro de coisa tão mais simbólica de um profundo espírito democrático. Deve ser caso único no mundo.

Futilidade de fim-de-semana


O fim de semana permite o relaxamento propício a que escrevamos coisas ligeiras e fúteis, sem o risco de nos chamarem parvos. E nem sempre o fútil é parvo!

Escreve hoje (17.2.2007) José Pacheco Pereira, no Público, que "a rápida mudança do tempo vivido dos objectos torna obsoleto qualquer filme de ficção científica que tenha mostradores analógicos em vez de digitais, porque nós sabemos que o futuro não substituiu apenas as alavancas por botões, mas acabou com os mostradores redondos em que um ponteiro podia indicar um drama quando se aproximava do vermelho. Hoje, só para os filmes de submarinos da segunda guerra mundial."

É verdade, tudo é digital à minha volta, o despertador, a televisão e anexos, o micro-ondas, o manómetro da caldeira de gás, até o temporizador dos cozinhados. Uma coisa não, em que sou irredutível gaulês, o relógio. E nem é porque me possa dar ao luxo de ter um Rollex.

E não se ficam...

A intolerância, com alguma dose de fanatismo, acompanha-se muitas vezes da incapacidade de reconhecer uma derrota. Em linguagem futebolística, tentam sempre ganhar na secretaria o que perderam no campo. Enganavam-se os que pensaram que os movimentos do "não" iriam ficar tranquilamente resignados, democraticamente, com a sua derrota. Já começou a guerra do aconselhamento.

Antes de comentar o assunto, anoto que esta campanha do aconselhamento promete ser tão "séria" como a do "não". São repetidas as alegações de que o PS e, designadamente, Sócrates estavam a trair o que prometeram na noite de 11. Posso estar enganado, mas nunca ouvi qualquer promessa em relação ao aconselhamento, apenas em relação ao estudo das boas práticas europeias. Mesmo que se queira ir tão longe que se pretenda que isto inclua o caso alemão, ele é muito mais do que a simples questão do aconselhamento. E porque é que o exemplo de um só pais há-de valer mais do que todos os outros?

Mais desonesto é outro argumento, surrealista. Afinal, quem está agora a ser defraudado é o votante no "sim" porque se sabe (!) que este voto só ganhou pelo convencimento de que a lei iria incluir o aconselhamento. Não sabia que o professor Chibanga tinha sido consultado pelos movimentos do "não".

A referência ao caso alemão não é inocente. Os agora lutadores pelo aconselhamento não gostam de deixar claro que na Alemanha as comissões de aconselhamento incluem representantes religiosos. Não tenho dúvidas de que, se aprovado cá o princípio do aconselhamento, o passo seguinte seria a exigência dessa participação.

Não consigo perceber a lógica do aconselhamento. Aconselhar só faz sentido como sabemos quando procuramos conselho, no caso determos dúvidas ou dificuldade de tomar uma decisão. Por princípio, o conselho é simétrico, ou para sim ou para não. Isto quer dizer que, hipoteticamente, uma grávida indecisa podia ser aconselhada a fazer um aborto, coisa que só a ela, estritamente, compete ter como intenção. Gato escondido com o rabo de fora, o que se pretende é que o aconselhamento seja sempre no sentido da dissuasão do aborto.

Coisa diferente, como aliás em qualquer procedimento médico, é haver uma consulta, estritamente médica, que permita à mulher uma decisão informada, um princípio hoje comum a praticamente todas as intervenções médicas. Também diferente é o acompanhamento posterior, tanto no que se refere a eventual apoio psicológico, se necessário, ou a ajuda no planeamento familiar. A meu ver, isto nada tem a ver, directamente, com uma lei do aborto.

Finalmente, e claramente relacionada com este assunto, a questão das declarações do Presidente da República. Não concordo de todo. Quando os partidos convergiram em declarações no sentido do desejo de busca de entendimentos, as declarações do PR são redundantes e configuram, não digo que propositadamente, uma intromissão na actividade parlamentar. O PR tem muitas formas de fazer chegar aos partidos as suas opiniões. Se o faz publicamente, tem de ser por razões importantes. Pergunto-me se não significa isto um aviso prévio em relação a um eventual veto politico, com base numa possível margem pequena de maioria. Se é, o PR corre um sério risco, porque creio que, num caso desta importância política, certamente seria desautorizado a seguir por uma confirmação da votação anterior.

15 fevereiro, 2007

E a seguir? (II)

Bem me palpitou! Segundo o JN, "Juventude Socialista reapresenta lei para casamentos gays". Volto a dizer que não tenho nada contra, mas que é mau "timing".

14 fevereiro, 2007

Gente fina é outra coisa

Quem escreve com nome e cara públicos tem de ser honesto e confessar todos os pecados, para que os leitores dêem o devido desconto aos escritos. Aqui vai uma confissão. Tenho o enorme desgosto de não pertencer ao "jet set" e de não receber todos os dias telefonemas dolicodoces do sr. Castro, uma ternura. Isto vem a propósito de uma notícia do público de 10.2.2007 (provavelmente, como é costume, isto vai sair ao retardador, quando me lembrar de o ir buscar ao meu enorme arquivo).

Foi presa uma senhora, Maria das Dores Pereira da Cruz, suspeita da autoria do homicídio do marido.
De acordo com pessoas próximas de Maria Pereira da Cruz, a relação da ex-bancária com o marido encontrava-se degradada há já "algum tempo". Para além de problemas sentimentais, a mulher do administrador da Campotec, uma importante central de distribuição de produtos hortícolas da região de Torres Vedras, debater-se-ia também com problemas financeiros, devido a uma "vida de luxos".

A última actividade de Maria Pereira da Cruz fora a representação da marca Kenneth Turner, especialista em velas aromáticas, que veio a revelar-se um fiasco comercial. O negócio terá transitado do seu primeiro filho, fruto de outro casamento. José David, de acordo com declarações de José Castelo Branco, seu amigo, está ligado à moda e é actualmente estagiário na revista Vogue, em Nova Iorque.
(...)
Ela amante de luxos, ele amante de piano José Castelo Branco conta que foi através de José David que conheceu Maria Pereira da Cruz. A célebre figura do jet-set descreve a mulher como "uma pessoa divertida, que adora vestir-se e arranjar-se". "Era um pouco doida, mas no bom sentido, no sentido em que era extrovertida", precisou Castelo Branco, acrescentando que o casal esteve uma única vez em sua casa, numa festa, "mas nem sequer foi fotografado".
Esta proximidade com Castelo Branco, mas sobretudo com os cabeleireiros Duarte Menezes e João Chaves, de cujas casas seria visita frequente, não significa contudo que Maria Pereira da Cruz fosse uma figura recorrente do jet-set.
Isto começa a baralhar-me. Moda, cabeleireiros, e ainda por cima o conde de Chateau Blanc? Finalmente, o juízo de que afinal a senhora não era assim tão Caras. Mas quem melhor para decidir?
Líli Caneças, assídua em eventos deste tipo, afirma não a conhecer. "É o segundo jornalista que me telefona por causa disso, não sei porquê. De nome, não a conheço", salientou.
Fico mais tranquilo, porque destas coisas quem sabe é a Lili, muito querida, aí vai um beijinho, não sei bem onde, escolhe, em sítio que não desmanche a plástica.

Nota final – alguém conhece o jornalista fofoqueiro responsável por esta brilhante peça, Ricardo Dias Felner?

13 fevereiro, 2007

O novo visual do Público

Gosto da nova apresentação do Público. Até nem sou muito sensível ao aspecto visual de um jornal, o que me interessa é o conteúdo e leio com prazer os ainda bastante clássicos NYHT ou El País. No novo Público, só me fica a nota estranha de alguma parecença com o Expresso. Foram ambos à mesma fonte (ainda se lembram do Guardian cor-de-rosa?). Também me falta o logótipo de tantos anos. Creio que vai ser das coisas mais controversas nesta remodelação gráfica.

Mudou o tipo de letra, embora de forma talvez não muito perceptível parra a maioria dos leitores. Gosto do novo tipo mas não da diminuição significativa da dimensão. O Público esqueceu-se de que uma margem importante dos seus leitores já usa óculos para o perto. Concluindo acerca do grafismo, a minha maior pena é o domínio do laranja, que até se pode prestar a conotações. As cores têm significados afectivos. O laranja é menos adequado do que o azul, por exemplo, para transmitir uma ideia de seriedade, objectividade, visão desapaixonada. E era o azul a cor dominante do Público, desde logo no acento do logótipo. Tomado que já está pela antecipação do Expresso, o Público teve de escolher outra cor, mas eu preferiria então um verde azulado, como exemplifico na figura. Aliás, é a cor de marca do caderno 2.

Mais importante é a organização do jornal. Gostei do desaparecimento da secção Sociedade e sua divisão pelas muito mais directas e significativas Portugal e Mundo. Em contrapartida, não gosto nada de ver o espaço de opinião no fim do jornal, quase que despromovido. Gostava de o ler pelo menos antes do desporto. Finalmente, notável, para mim, é o caderno 2. Consegue ser a leitura típica dos suplementos de fim de semana, mas acessível à maior pressa da leitura diária. Ainda por cima, os conteúdos estão mais extensos e diversificados. Que mais não seja pelo 2, os meus parabéns ao Público.

Envelope 9

No Público de 10.2.2007, algumas declarações interessantes de Souto Moura, ex-PGR.
"Olhei para o ecrã e vi números que não me diziam nada. (...) Aliás, confessou ter sido a primeira vez que ouviu falar "de conta-Estado, filtro protector ou selector e coisas do tipo".
Que não me venha pedir emprego. Não admito nem como aprendiz, numa das "minhas" empresas, quem não saiba trabalhar minimamente com Excel. Mas será só ele? Quantos ministros, directores gerais, juízes conselheiros?

Vejo novamente na notícia uma palavra que me tem surpreendido, em toda esta história: "disquetes". Será mesmo? Ou será CD? Já não me lembro há quantos anos usei a última disquete. A PT ainda trabalha com disquetes? Se sim, merece mesmo ser "opada".

12 fevereiro, 2007

E a seguir?

E agora, o que vem a seguir? Creio que a vitória do "sim" animará os defensores do debate de outras questões sócio-culturais importantes. Penso logo no casamento homossexual, que também afecta directamente, com boa probabilidade, dezenas de milhares de portuguesas e portugueses. Também na eutanásia. No entanto, tenho fortíssimas dúvidas sobre se já há receptividade cultural no nosso país para a sua discussão.

Diferente me parece o caso de outras duas chagas sociais, talvez mais relevantes do que o aborto clandestino: o consumo de drogas e a prostituição. Creio que, em ambos os casos, haverá, como no aborto, uma atitude afectiva geral de simpatia para com as vítimas. No entanto, a meu ver, há uma diferença essencial em relação ao aborto. Descriminalização só do agente "directo" (o tóxico-dependente ou a prostituta), mas nenhuma contemplação para com o traficante ou o agente de lenocínio. Até vou mais longe, penalização de quem solicita os serviços sexuais.

É claro que vejo estes dois casos na mesma perspectiva do aborto. Não se trata de simples liberalização, mas sim de um instrumento de combate à clandestinidade e de políticas mais amplas, de desintoxicação e de saúde pública (basta lembrar a Sida), num caso, de reinserção social no outro.

E pur si muove

Às vezes, é preciso que acontecimentos marcantes nos façam apercebermo-nos de como, apesar de tudo, este país está a mudar.

11 fevereiro, 2007

LOL!!!

"Lon Pressnall, um actor praticamente siamês de Abraham Lincoln (...)". Isto lê-se hoje no Público, numa notícia assinada por Rita Siza. Siamês? Ia-me partindo de riso, mas concluo, mais a sério, por um "viva o direito à asneira!"

Mandar e obedecer

As paredes dos corredores do meu liceu, "in illo tempore", estavam profusamente decoradas com quadros, obra prima de arte, as máximas de Salazar. Uma era, mais letra menos letra, "se soubesses o que custa mandar, gostarias mais de obedecer toda a vida". Deve ser das coisas mais execráveis que já li. Veio-me à lembrança por causa de um escrito de São José Almeida ("Liberdade"), no Público de 10.2.2007:
"A propósito de um concurso de televisão sobre o maior português de sempre (seja isso lá o que for), na segunda-feira à noite, Maria Elisa Domingues moderou um debate, na RTP1, em que foram apresentados argumentos e desenvolvidos raciocínios diversos sobre o pendor que os portugueses terão para serem mandados, para obedecerem, para aceitarem com docilidade e complacência o autoritarismo de um líder. Querendo tão-só questionar o problema, não estará esta conclusão um pouco desfasada da realidade? Não será que a questão está posta ao contrário? Isto é: não serão as elites portuguesas que têm um forte pendor autoritário e uma mentalidade e hábitos mentais de actuação social e cultural não democráticos, pouco tolerantes e pouco respeitadores do direito à individualidade do outro?"
"Elementary, my dear Watson!" Tenho alguma dúvida sobre essa propensão do português para a obediência. Até aos anos 70, a sociedade portuguesa de que Salazar se assenhorou era essencialmente rural e de cultura camponesa. Nessa cultura, sempre foi importante a rábula, a manhosice, a hipocrisia, a humildade fingida. Tudo isto a levar à imagem de obediência inata, mas só pública. No privado, o camponês sempre foi o ditador da família. E, ao contrário da imagem popularizada por Rafael, era portas a dentro que o Zé Povinho fazia manguitos, não em público.

Muito menos agora se pode esperar obediência instintiva de um povo que, bruscamente, se terciarizou, desertou do mundo rural, aprendeu com a Europa, primeiro na emigração agora nos negócios. São José Lopes tem razão: quem parece que nunca evolui são os que têm tendência para o autoritarismo ou para o qual se sentem predestinados, vá-se lá saber porquê.

10 fevereiro, 2007

Racismo (II)

Um comentário deixado à minha nota precedente sobre o racismo fez-me ir ler a crónica de Clara Ferreira Alves, no último Expresso, "A praga chinesa". Começa logo pelo título, de muito mau gosto. Obriga-me a alguma escrita, que há coisas que não se podem deixar passar em claro, quando escritas com grande difusão e por uma pessoa que até, normalmente, gosto de ler.

Vou correr o risco, espero que bem controlado, de fazer citações retiradas do contexto. O contexto, neste caso, é importante, o da critica a uma sociedade aparentemente sem escrúpulos, contraditória, que pretende conjugar a modernidade económica com o maior atraso politico e do respeito pelos direitos humanos. No entanto, julgo que isto não desculpa que, a propósito, se escrevam coisas como as seguintes, para mais ofensivas de uma nossa comunidade imigrante pacífica, trabalhadora, que não tem nada a ver com os desmandos do regime chinês. Que se diria de um artigo do mesmo tipo, nos anos 60, num jornal francês, misturando salazarismo e colónia portuguesa em França?
(...) não podemos negar que os chineses se interessam violentamente pelo território português nos últimos anos. Violentamente, a meu ver, porque as lojas com lanternas vermelhas à porta, género «papier machê», são as lojas mais esquálidas e desgraçadas que alguém se lembraria de implantar em território europeu.
(...)
Por qualquer razão que me escapa, que nos escapa e que, diz-se à boca pequena, tem a ver com os interesses colonizadores da China e a nova versão do perigo amarelo, as lojas chinesas reproduzem-se como coelhos por esse Portugal fora, e no Alentejo abrem exacta mente no mesmo lugar onde fecharam, por falta de clientes, as lojas portuguesas. Vêem-se lojas chinesas à beira da estrada, nas ruas principais, nos centros comerciais. Vêem-se lojas chinesas encostadas a restaurantes chineses e sem estar encostadas a restaurantes chineses, cobertas de flores de plástico e de cartazes a dizer que está tudo a menos de 1 euro, ou de 10 euros, ou qualquer quantia irrisória. Lá dentro é o bazar desarrumado e sintético, exemplo milagroso do crescimento económico destinado a produzir lixo. As lojas chinesas são inestéticas, são concorrência desleal e estão a matar o equilíbrio do mercado e das lojas tradicionais portuguesas. Se esta frase parece racista é provavelmente porque ela é racista [JVC: e é!].
(...)
Na verdade, é impossível não perguntarmos o que diabo fazem tantas lojas chinesas em território português e quem sustenta e apoia estes comerciantes que resolvem vir para Portugal e para uma região de Portugal que está nos antípodas da sua sensibilidade, como o Alentejo. Quem sustenta e apoia estes imigrantes que não sabem falar português e que não são de Macau nem são sobras do império, e lhes diz para vir inundar zonas economicamente deprimidas com quinquilharia ambulante. A China, além de poluir a terra (e toda a gente sabe que já não se consegue respirar em Hong Kong), polui o mundo com o seu modelo de negócio. Talvez pudéssemos retribuir abrindo umas lojas de pastéis de bacalhau e galos de Barcelos na China, mas, até lá, somos inundados com óculos de ver ao perto, rosas artificiais, brinquedos, vestidos de poliéster, cabides, bugigangas, enfeites, paisagens amarelas e cor-de-rosa, sacos, tapetes, sapatos, altifalantes, relógios, colares, contas, cartas... e montras de entulho.
Já tenho escrito muita asneira, mas creio que nunca mais sairia de casa, escondido com vergonha, se me tivesse saído uma coisa destas.

Racismo

Notícia do Público, 2.2.2007.

"Um casal belga recusou-se recentemente a casar na cidade flamenga de Saint-Nicolas, no Norte do país, por causa da cor da pele do magistrado municipal designado para oficializar a união, noticiou ontem o jornal de língua holandesa De Morgen, citado pela AFP. Wouter Van Bellingen foi o primeiro magistrado municipal eleito na Flandres, na sequência das eleições de Outubro do ano pas-sado. O casal de Saint-Nicolas, que tinha começado a tratar do processo antes das eleições, explicou ao burgomestre (equivalente ao presidente da câmara) Freddy Willockx que não queria ser casado por um homem negro, como Van Bellingen. "Este é um verdadeiro exemplo de racismo", criticou Willockx, que se recusou a designar um outro magistrado para celebrar o casamento."

Sem comentários!

09 fevereiro, 2007

Abuso de poder

No Público de hoje:
Na sequência de afirmações de psiquiatras ligados aos movimentos pelo "não", que falavam de uma "síndrome pós-aborto", mais de 50 psiquiatras subscreveram um abaixo-assinado, no qual rejeitam a existência de diagnósticos psiquiátricos resultantes do aborto, realçam que o conceito não existe em nenhum compêndio científico e tomam posição a favor da despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas.

Subscrito por vários chefes e directores de serviço de psiquiatria (...) o documento começou a circular, apenas no meio psiquiátrico, em reacção às declarações de Adriano Vaz Serra, director do serviço de psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra, que corroborou a ideia de uma "síndrome pós-aborto", primeiramente referida pela psiquitra e mandatária da Plataforma Não Obrigada! Margarida Neto. O que mais indignou os subscritores do abaixo-assinado foi o facto de Adriano Vaz Serra ter falado como presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental. Ao PÚBLICO, a psiquiatra Ana Matos Pires, mandatária dos Médicos pela Escolha, adiantou ter já enviado um pedido de esclarecimento ao colégio de psiquiatria da Ordem dos Médicos e acrescentou que também vai dirigir a mesma solicitação à Sociedade Portuguesa de Psiquiatria.
Acho que fazem muito bem. Descontando algum exagero, parec-me estar-se perante o análogo criminal do abuso de poder. Aqui, não se trata do aproveitamento de um cargo para fins ilegítimos de antureza material, mas não fica muito longe. É o aproveitamento de um cargo e de uma credibilidade por ele conferida para enganar a opinião pública. Ai, o tão apregoado código deontológico dos médicos!

Incompetência ou manipulação?

O destaque de hoje, no Público, com um artigo principal de Nuno Sá Lourenço, vai para a última sondagem e tem o aparente rigor de até relembrar as margens de confiança. Transcrevo.
"54 por cento de intenção directa de voto manifesta-se a favor do "sim", enquanto 33 por cento diz ir votar "não".
(...). Uma vez que a margem de erro da sondagem se situa nos 2,5 por cento, o "sim" fica muito próximo dos 50 por cento."
Tolice. Na página seguinte, vê-se que estes valores se referem ao universo dos eleitores, incluindo os abstencionistas. Sabe-se bem que, num referendo, é necessário separar as duas situações.

Primeiro, a abstenção, que determina se o referendo é ou não vinculativo. Mesmo com a margem máxima de erro estatístico da sondagem, fica-se com a ideia, para mim surpreendente, de que a abstenção não ultrapasará os 14%. Não quero crer, porque, numa sondagem de voto em urna, há uma certa pressão psicológica para que os sondados votem. De qualquer forma, a sondagem é sugestiva de um resultado vinculativo.

Para a vitória do sim ou do não, as abstenções são irrelevantes. O que conta são os votos expressos. O jornalista esqueceu-se de coisa tão elementar, que salta à vista na figura da página seguinte: 62% para o sim, 38% para o não. Não há erro de amostragem que mude o resultado final, embora estejamos a falar apenas de uma sondagem.

A meu ver, o Público teve grande correcção e isenção durante esta campanha. Mas no melhor pano cai a nódoa.

Citações, sobre o referendo (6)

(Enquanto não tenho de respeitar o período de reflexão).

"35% das mulheres que vão abortar à Clínica Los Arcos completaram o ensino secundário, 2,5 o ensino profissional, 6,56 bacharelato e 25,4 a licenciatura." (Público, 8.2.2007).

Igualdade social em relação ao aborto em condições sanitárias e, na praática, impunível?

Encerramento da campanha


(Como considero os blogues como uma forma de comunicação social, sujeito-me às regras e encerro hoje a minha escrita sobre o referendo)

08 fevereiro, 2007

Rigor científico

Tinha dito que não voltava ao debate científico, mas há coisas que são demais. Uma investigadora portuguesa, radicada na Inglaterra, publicou há algum tempo um artigo científico demonstrando que o feto de 16 (!) semanas já tem reacção à dor. Não conheço o artigo, mas a revista é reputada.

Simplesmente, vem agora participar na campanha do "não", afirmando haver "evidência" de que o mesmo já se passa às dez semanas. Há aqui uma má tradução do "evidence" que, apesar de incorrectamente, aparece em alguns artigos com o sentido de quase-certeza, ou sugestão muito forte, embora falte a prova experimental. Por isto, não é admisível, num artigo, apresentar esses dados no capítulo de "resultados", mas é frequente usá-los na "discussão", mas sem que isso passe a constituir "verdade" científica.

Alguém a questionou sobre o significado do seu uso de "evidência". Confessou que os dados que tinha eram apenas "sugestivos". Toda a gente, em ciência, sabe o que isto quer dizer. "Tenho um palpite, não tenho provas, mas deixa-me escrever, para ter algum crédito se isto se vier a demonstrar".

Quando se faz manipulação política ou ideológica, quando se torce a moral, quando se faz proselitismo religioso, está-se no domínio do jogo social, que devia ser só de "fair play" mas em que se dá muita canelada. Quando se violenta a ciência e a racionalidade, está-se a pôr em risco o que de mais nobre e avançado tem a civilização. Quando isto é feito por um cientista, é execrável.

Porque voto sim (IV) - a realidade social

Concluo esta série de notas sobre "porque voto SIM", agora tentando ir directamente ao centro da questão, o problema prático e real. No entanto, antes, quero rejeitar inteiramente qualquer interpretação abusiva do meu voto.

Ao votar SIM, não vou votar pela "liberalização" do aborto. Neste jogo de palavras em que o debate tem sido fértil, entendo liberalização como situação análoga à da pesca amadora, acto indiferente, socialmente nem aprovável nem reprovável, porque não é questão da sociedade. Pelo contrário, a pergunta que vou apoiar mantém o aborto como crime, apenas acrescenta mais uma situação de descriminalização específica às que já vigoram hoje.

Ao votar SIM, não vou votar pela banalização do aborto, nem acredito que a esmagadora maioria das mulheres confrontadas com esse drama permitissem essa banalização. Elas vão reservar para bem fundo do seu esquecimento essa experiência necessária, nunca ouvirei alguma a gabar-se publicamente de ter abortado.

Ao votar SIM, não vou votar pela utilização do aborto como método anticoncepcional de primeira linha e, mais uma vez, duvido de que alguém em seu perfeito juízo o considere como tal.

Nada disto está em causa. Se for chamado a um referendo (espero bem que não) sobre a legalização das drogas leves ou sobre a regulamentação pela positiva da prostituição, é óbvio que não estou a desejar que um filho meu se drogue ou que uma filha se prostitua. Votaria como cidadão, considerando apenas o que é que a realidade social implica em termos de ordenamento jurídico, e reservando para a esfera pessoal as minhas próprias opções, no concreto, obviamente estas condicionadas pelos meus valores éticos.

Por isto, embora seja afirmação surrealista, mas que alguns fanáticos merecem, ao votar SIM não vou votar pela obrigatoriedade do aborto, vou votar pela liberdade de escolha, contra a ditadura moral de parte da minha sociedade.

Ao votar SIM, vou votar, essencialmente, é contra o aborto clandestino, convencido de que esta proposta contribui decisivamente para o combate ao aborto clandestino. Entenda-se que não estou a pensar, como clandestinos, nos abortos das mulheres com posses que o vão fazer ao estrangeiro, em boas condições, antes na mulher carente que não tem recurso seno à "clínica" da cozinha de parteira dos subúrbios. É que também o aborto é matéria de discussão (e correcção) de desigualdades sociais.

O combate ao aborto clandestino tem dois aspectos relativamente distintos. Um é de natureza sócio-jurídico, outro é de ordem de saúde. Com a primeira referência, estou a pensar na atitude, que partilho, de repúdio pela humilhação e eventual condenação das mulheres que vão a tribunal (anote-se que nunca as que vão a Badajoz, bem protegidas pelo anonimato). No entanto, em termos objectivos e práticos, parece-me que foi demasiadamente salientado pelo "sim". Primeiro porque vai contra a enorme desproporção entre o problema médico (duas dezenas de milhar de mulheres, das quais talvez um quarto a necessitar de intervenção médica posterior) e o jurídico (uma dúzia). Depois, porque permitiu esta enorme confusão hipócrita de defensores do "não" que também não querem ver as mulheres no banco dos réus.

Ao falar de um problema de saúde, convém salientar que estou a entender saúde no seu sentido abrangente hoje consensual: um estado harmónico de bem-estar físico e psíquico (e até social). Se pensasse em saúde em termos convencionais, até poderia admitir que a lei actual é razoável embora muito deficientemente aplicada (admito que é factor que também venha a influenciar a lei agora a referendar).

O aborto é sempre agressivo, mas mais uma razão para que se minimize essa agressão, permitindo a sua prática em ambiente médico adequado, inclusive em termos de aconselhamento e posterior acompanhamento psicológico. No debate, tem sido muito mais discutida a questão das dez semanas do que a outra restrição: "em estabelecimento de saúde legalmente autorizado".

Este é um ponto crítico. Se não for nestas condições, se continuar a ser em "clínicas" infectas, se continuar a ser feito por "técnicas" que não arriscam anestesia que não sabem fazer e que o deixam incompleto para depois as mulheres terem de ir ao hospital desfeitas em hemorragia, continuará a ser crime e muito bem que continuará. Sem esta restrição à pergunta, certamente que eu votaria "não".

Pensar que o "sim" vai limitar o aborto clandestino é utópico? Claro que não. Haverá mulheres suficientemente estúpidas para preferirem as barbaridades de muitas abortadeiras ao aborto em unidades de saúde, ainda por cima, na maior parte dos casos por meios medicamentosos e não cirúrgicos? No entanto, admito uma limitação, para a qual tenho chamado repetidmente a atenção

À margem – sabem o que me ocorre ao ler muita coisa do lado do "não", no caso, largamente maioritário, de escritas masculinas? As mulheres portuguesas não mereciam os homens que tristemente têm. Homem, com rejeição total do machismo, é o que se maravilha com a especificidade feminina e disso dá o maior sinal, o respeito pela mulher. "Profumo di duonna!" Se calhar, neste referendo só deviam poder votar mulheres...

07 fevereiro, 2007

Polémica inédita

No meio de tanta coisa desgostante posta a nu pelo debate sobre o referendo, anoto, com certo gozo, uma coisa inédita: uma polémica pública entre dois padres católicos. Domingo, na sua coluna habitual no Público, Frei Bento Domingues, hoje o Pe. António Vaz Pinto, em resposta explicitamente directa.

Isto ainda é mais picante para quem conhec a rivalidade secular entre dominicanos (BD) e jesuitas (AVP).

Anote-se que a discusão tem o nível que se espera dos intervenients. Não são párocos de aldeia a ameaça com excomunhões. E sobre isto, fica-me uma curiosidade. Como é que o padre de Castelo de Vide vai saber como votou cada um, para excomungar imediatamente os que votaram sim?

Porque voto sim (III) - a hipocrisia

Esta nota não cabe bem na discussão dos motivos para eu votar sim, a não ser por alguma infantilidade birrenta. Quero dizer que, se me provocam, por vezes não resisto. E os "não" estão a fazer coisas que, mesmo que eu não estivesse convicto, me levariam a votar "sim", só para me desmarcar e os chatear.

Provavelmente, os formuladores da pergunta, bem intencionados, não pensaram que a palavra certa devia ser descriminalização e não despenalização. Para o vulgo, que é indiferente a um código penal que nunca lerá, despenalizar quer dizer só que as mulheres que fazem um aborto não vão para a cadeia. Mas não é que agora há tantas boas almas do "não" que vêm dizer o mesmo (ou, em versão mitigada, que apenas devem cumprir tarefas cívicas, como castigo)?

Não percebo. O Código Penal não é um manual de moral e de bons costumes, não é um catecismo de pecados a exibir à censura pública, é uma listagem de crimes e não sei como é que pode haver crime sem penalização (independentemente das atenuantes ou da suspensão da pena, mas que não é verdadeiramente uma despenalização).

Esses senhores não são parvos e perceberam, muito antes, o que escrevi na minha nota anterior. A nossa cultura é permissiva para com o aborto, e muito bem, porque as culturas se fazem por mistura de muitas vivências, em que a convicção religiosa é apenas uma parcela e nem sequer, socialmente, ao nível dos letrados. Eles perceberam que ninguém deseja ver uma mulher na prisão por causa de um aborto. Então, duplicam o discurso. Para os letrados fundamentalistas, o "não" puro e duro, para o eleitor comum, crime sim mas sem condenação. Não me recordo de ter assistido alguma vez a tamanha desonestidade intelectual. Nem no fascismo, que até era intelectualmente coerente.

E o que teria sido um referendo sobre a despenalização da homossexualidade/sodomia, crime até ao 25 de Abril, que hipocrisia seria! Sim/não praticante (abertura de espírito), sim/praticante (interesse directo, cada vez mais assumido, e muito bem), não/não praticante (ah, "ganda" macho!), não/praticante (coragem para se assumirem publicamente?). E, neste referendo, não haverá também "não/praticante"?

Há outra coisa de que não falam, os fundamentalistas do "não", a dos outros participantes no aborto. Admitem que a mulher sim, coitada, não pode ir para a cadeia. Mas em que é diferente a responsabilidade de quem se solidarizou com ela? Vou afastar a questão contaminante do negócio. Refiro-me só aos casos, e conheço bastantes, que promovem ou executam o aborto apenas por solidariedade para com o sofrimento dessas mulheres.

A meu ver muito bem, o grupo parlamentar do PS já anunciou que, caso vença o "não", não apresentará nenhum projecto de lei hipócrita, de pseudo-despenalização. É certo que a primeira proposta nesse sentido veio de uma sua deputada, Maria do Rosário Carneiro, mas a questão é de se saber o que faz essa senhora, independente, no grupo do PS. E, como bem disse Maria de Belém, "é o mesmo que não se querer a fogueira e ser a favor da Inquisição". Os do "não" que descalcem a bota. Infelizmente, quem nem a pode descalçar são todos aqueles cidadãos anónimos que votarem "não" e que não têm condições para intervenção política subsequente.

"O aborto é crime. Mas pode-se fazer. Mas é proibido. O que acontece a quem o faz? Nada". Grande gato fedorento! Mas, infelizmente, a vida não se resume ao humor, por melhor que este seja.

P. S. – Relendo esta nota, dou pelo uso da palavra "fundamentalista" e não a retiro. O 11 de Setembro só nos deve fazer pensar no fundamentalismo islâmico? Tolice, dir-me-ão, fundamentalismo não quer dizer obrigatoriamente terrorismo. Mas sabem quantas bombas já explodiram, nos EUA, em clínicas que facultam o aborto?

Recordando os meus pais

Em homenagem aos meus pais, falecidos mas que estou certo de que votariam sim, católicos convictos mas com uma busca incessante de respostas aos desafios quotidianos à sua fé, sempre na vanguarda dos movimentos de abertura religiosa, transcrevo, sem comentários, um artigo de Ana Vicente, do movimento "Nós somos Igreja". Os meus pais também entendiam que igreja eram eles e muitos milhões de irmãos seus na fé, não uma nomenclatura de sacristia.

O primado da consciência

Aproxima-se a data em que poderemos cumprir um dever e um direito cívico que nos é facultado pelo nosso sistema político. Este é desde logo um aspecto positivo, pelo que a minha primeira grande esperança será que o número de votantes seja expressivo e que atinja, pelo menos, as percentagens de votantes das eleições legislativas ou presidenciais. A minha segunda grande esperança é sermos capazes de debater a pergunta que nos é colocada de forma serena, tal como nos foi sugerido quer pelo cardeal-patriarca de Lisboa, quer pelo Presidente da República, em pleno respeito pela opinião contrária.

O que me perguntam é se eu sou a favor da alteração da lei actualmente em vigor, segundo a qual uma mulher que faz um aborto, nas primeiras dez semanas de gravidez, pode ser condenada a uma pena na prisão. Neste caso, até três anos.

Acompanho há muitos anos a evolução da situação das mulheres e dos homens no nosso país e noutras zonas do mundo e sei que, de acordo com todos os estudos nacionais e internacionais, o desenvolvimento humano (que engloba obviamente o social, económico e político) de qualquer comunidade está estreitamente ligado ao respectivo estatuto das mulheres e dos homens, aos equilíbrios e desequilíbrios de poder entre os dois sexos, nas várias esferas da vida. Reside também aí a persistência dos nossos baixos índices de desenvolvimento, em comparação com os restantes países da União Europeia.

Trabalhei na então Comissão da Condição Feminina num projecto de informação sobre planeamento familiar, em finais da década de 70, do século XX, quando, em boa hora, o dr. Albino Aroso fez publicar a portaria que instituiu serviços de planeamento familiar no sistema público de saúde. A frase forte de todo o nosso trabalho era: "Ser responsável pelo nascimento dos nossos filhos." Era uma época em que as mulheres portuguesas recorriam ao aborto, clandestino evidentemente, como método contraceptivo habitual, por não terem tido, até então, qualquer outra escolha. As consequências deste e muitos outros factores interligados implicavam altíssimos níveis de mortalidade infantil e materna. Recordo as muitas cartas que recebemos, manifestando alegria face à possibilidade de viver uma sexualidade realizada e não temerosa de gravidezes inesperadas e indesejadas.

Apesar de a lei que criminalizava o acto de abortar em qualquer circunstância ter sido, finalmente, alterada em 1984, suspendendo a ilicitude em determinadas condições e ter sofrido algumas subsequentes modificações, é notório que um número elevado de mulheres continuam a recorrer ao aborto clandestino. É igualmente reconhecido que um número significativo das mulheres que fazem abortos são a tal forçadas pelos respectivos maridos, companheiros ou progenitores. Penso firmemente que a melhor forma de apoiar estas mulheres é eliminar deste quadro degradante, em termos de dignidade humana, a clandestinidade em que tem estado envolvido.

Noto, por outro lado, que a instituição-Igreja Católica está muito activa na campanha do "não", mas creio que em nada dignifica essa instituição a emissão de mensagens ameaçadoras das consciências individuais dos seus fiéis. Essas atitudes são até contraditórias com a folha de serviços à comunidade que essa mesma instituição presta, nomeadamente no acolhimento residencial a idosos, pessoas portadoras de deficiência e crianças e jovens sem família efectiva (tarefa essa que desenvolve, é de justiça lembrar, em grande parte com o apoio económico da segurança social, ou seja, com o dinheiro dos nossos impostos).

Interrogo-me, por vezes, sobre o que estará na base desta inusitada energia por parte da instituição-Igreja Católica, procurando manter uma lei civil que penaliza as mulheres que, em consciência, decidem fazer um aborto nas primeiras dez semanas de gravidez. Deseja, portanto, que o Estado investigue, julgue e eventualmente condene a penas de prisão mulheres que fazem estes abortos, sejam elas católicas ou não. Não entende que o acto de abortar é suficiente pena para aquelas que o praticam. Não precisam de uma pena suplementar.

Convenhamos ainda que, sendo essa instituição dirigida exclusivamente por homens celibatários, que consideram que as mulheres não têm dignidade suficiente para aceder aos ministérios ordenados, há qualquer coisa de profundamente inquietante nesta atitude. Não perceberão que um grupo de homens que, no seu pleno direito, rejeitou constituir família, não possui autoridade efectiva para se pronunciar sobre os comportamentos reprodutores das mulheres?

É bom poder afirmar existirem milhares de fiéis, entre os quais me incluo, que, em consciência, na procura da fidelidade à mensagem evangélica de amor pelo próximo, e ainda na assunção plena de uma cidadania responsável, vão votar "sim" no próximo referendo.

(Público, 2.2.2007)

06 fevereiro, 2007

Estúpido?

Li hoje, estupefacto, que Santana Lopes acha que é dever do Presidente da República revelar antecipadamente o seu sentido de voto, domingo. Se um PR declarar em quem vai votar numas eleições, é um escândalo. Mais ainda numa questão em que o que se decide são as convicções profundas dos cidadãos, com grande influência das suas visões ideológicas.

A minha primeira reacção foi lembrar-me do professor Chibanga, a tirar sempre do baralho a carta "estúpido". No entanto, SL não é estúpido. É pior, é um exemplo perfeito da maior viciação da ética política.

"Felizes os que dormem tranquilamente depois das maiores desonestidades intelectuais, porque deles é o reino da Caras." (novo sermão da montanha).

Porque voto sim (II) - a ideologia

Arrumada, para mim, a discussão do aborto com recurso argumentativo à ciência, avanço para o nível seguinte, o jurídico. Com isto, passo a falar como leigo, apenas como alguém que pretende exercer o senso comum com inteligência. A minha primeira confusão é entre descriminalização e despenalização. Acho que a pergunta referendária devia ter usado o primeiro termo, para evitar a desonestidade intelectual com que os defensores do não se estão a apresentar como estranhos apoiantes da despenalização. Por isto, até à próxima, ponho-me ao escrever este texto na posição dura. O aborto, nas condições do referendo, deve ser crime ou não, independentemente do que acontece aos "criminosos"?

Imagino que haja milhares de páginas de teoria jurídica sobre a noção de crime. Coitado de mim, vou apenas pelo meu bom senso de Sancho Pança. Crime é tudo aquilo em que eu leso os outros, no respeito mútuo pelas liberdades individuais sobre as quais se constrói a sociedade. Crime é também, num plano superior, tudo o que lesa a segurança dessa sociedade, o golpe de estado, a traição, o abuso de poder. Depois, um campo difícil, o do atentado contra os valores civilizacionais, muitas vezes consagrados em documentos que configuram o património civilizacional comum de toda a humanidade.

Creio que o problema da valorização ética e jurídica do aborto cai nesta complicada terceira classe. É zona sedimentar muito dinâmica, em que só devemos ter por adquiridos os estratos bem consolidados. Não é só o aborto, é também o casamento de homossexuais, o seu direito à adopção, a legalização de drogas leves, a prostituição, a luta antitabágica.

Se há uma conquista indiscutível da mente humana é a sua abertura e flexibilidade. Perante problemas deste tipo, creio que a atitude obrigatória de cada homem é a de distinguir entre os que estão no debate de mente aberta e os que apenas exprimem uma visão estreita e dogmática. Não me interessa quem é que tem razão, mas creio que é minimamente exigível a quem quer entrar em qualquer discussão ter um atitude de bom senso e, essencialmente, de rigor intelectual. Neste jogo de futebol, uma equipa é de tipos que saltitam alegremente e a sorrir desportivamente, a outra é de uns pobres limitados em cadeiras de rodas. Vou poder fazer uma crítica racional ao jogo?

A vida humana é um valor indiscutível, nada pode ir contra ela (pena de morte, guerra?!). No entanto, não é um conceito que passe da religião ou da filosofia para o consenso. E a lei, os costumes, as regras da vida colectiva, esta coisa essencialmente humana que é o direito, mostram que o aborto não faz parte ainda do núcleo duro dos valores civilizacionais indiscutíveis. O infanticídio sim, são entre nós uns poucos casos aberrantes por ano. Mas o aborto é, provavelmente, praticado anualmente por cerca de 20.000 mulheres. Há vinte dezenas de milhar de portuguesas, mais os seus companheiros, que são, por natureza, criminosos?

A percepção de um crime está longe do nível em que ela significa uma condenação social forte. Segundo o que há dias escreveu Alexandre Quintanilha, no Público, "em Itália 74% é a favor do recurso à pílula do dia seguinte (RU-486) que impede a implantação do embrião e simula um aborto "natural". No México, dois terços da população urbana considera que o aborto deve ser permitido a pedido da mulher. Estas e muitas outras sondagens ajudam a perceber que no caso da IVG estamos numa área cinzenta em que para a grande maioria a vida do embrião tem um estatuto legal diferente e menos abrangente do que o da mãe. 
Mas são precisamente estas áreas cinzentas que atraem os bioeticistas e que requerem a intervenção política. Sabendo que nos Estados Unidos, uma em cada três mulheres fez um aborto antes da idade dos 45 anos, mesmo que essa incidência em Portugal fosse muito inferior, provavelmente ainda teríamos centenas de milhares de portuguesas nas mesmas condições. Para muitas destas, principalmente as de menores recursos, a única solução é o aborto clandestino com tudo o que de inaceitável o acompanha." Onde é que há aqui um mínimo consenso ético, também noutros países?

Vale a pena também recordar um excerto de um artigo de André Freire (Público, 5.2.2007). "E o que é que explica as diferenças entre os países Europeus? Usei as percentagens de pessoas que vão regularmente à missa (isto é, pelo menos uma vez por mês) em cada país, segundo os dados do Estudo Europeu de Valores, e correlacionei-as com o tipo de legislação em cada país (codificada de 1, "a pedido da mulher", até 4, "só em caso de risco de vida da mulher"). Resultado: uma correlação positiva (isto é, quanto maior a integração no universo religioso enquadrado pela Igreja mais restritiva é a legislação) e muito forte (+0,785) (o valor mínimo é 0,0, o máximo é 1,0). Ou seja, as restrições em matéria de IVG traduzem fundamentalmente a influência de uma determinada cosmovisão de base religiosa veiculada pela Igreja, pois há hoje vários católicos (autónomos face à hierarquia) pela escolha. Tal visão tem que ser respeitada, claro! Mas, como argumentam os seus defensores, o "sim" é tolerante: quem não concordar com a despenalização nunca será obrigado a abortar. Pelo contrário, se ganhar o "não", mesmo os que não concordam com tal mundivisão de base religiosa serão obrigados a vergar-se aos seus ditames."

Fica aqui a minha questão fundamental. O direito é coisa metafísica, sumo da alma humana, ou é uma construção social, feita dia-a-dia? A minha conclusão parece-me simples: não está sedimentada na nossa cultura e na nossa civilização a ideia de que o aborto é um crime. Não é para dezenas de milhares de pessoas directamente envolvidas, fora as que as apoiam. Parece que é para outros tantos, os fanáticos do "não". Eu até, democrata, vou pelos votos, mas não em coisas desta seriedade, que não podem ser decididas em referendos torcedores da racionalidade. Tempo ao tempo, há coisas tão fundamentais na nossa vida social que têm de sedimentar com a sabedoria das camadas geológicas do planeta, esta Gea que também é viva.

Assim sendo, porque o aborto não se enquadra nas minhas outras categorias de crime (agressão ao outro ou à sociedade) e porque me é muito duvidoso que se enquadre na minha terceira categoria de crimes (contra os valores civilizacionais), não posso aceitar a ideia de que é crime, o que não impede que o discuta em outros planos, como virá a seguir.

Concluindo. Neste terreno ideologicamente indefinido do aborto, a imposição dogmática dos convictos do "não" é antidemocrática, intolerante, arrogante. O sim deixa inteira liberdade de consciência aos não. O não proíbe o sim. É total assimetria de atitude mental. Não aceito isto nos meus amigos. Por extensão, apesar de ter de os considerar como concidadãos, repugna-me que muitos portugueses pensem assim. Assim continuaremos em apagada e vil tristeza. Assim, os nossos entardeceres serão de uma tal soturnidade. Assim, merecemos a decadência dos povos peninsulares (que surpresa teria Antero ao ver hoje a Espanha). Assim, não há vontade nenhuma que nos ate ao leme.

Citações, sobre o referendo (5)

Parece que só há católicos em Portugal. As outras religiões estão caladas, em relação ao referendo. A título creio que pessoal, Esther Mucznik escreveu alguma coisa no Público (2.2.2007) sobre a visão judaica.

"Então deve-se privilegiar o quê? O futuro em potência ou a actualidade do presente, o ser que se anuncia, ou a realidade existente? 
Posta assim, no geral e no abstracto, esta questão não tem resposta: cada caso é um caso e o judaísmo reconhece que a análise da lei judaica não é unívoca e que a decisão última pertence à mulher e ao casal, depois de aconselhamento médico e, se for o caso, de uma autoridade rabínica, no quadro dos parâmetros éticos e legais do judaísmo.

Sintetizando, os princípios gerais que presidem à questão do aborto na tradição judaica são: 1. o aborto como forma de evitar e fugir à responsabilidade de gerar e criar os filhos está em total oposição aos valores judaicos; 2. apesar de condenável, do ponto de vista ético, o aborto não é considerado crime pelo facto de o feto não ter existência própria; 3. a vida de uma mulher, a sua saúde ou o seu sofrimento são prioritários em relação ao feto, a vida existente tem prioridade em relação à vida em potência; 4. dentro do seu quadro familiar, médico e religioso, a mulher tem a liberdade pessoal de escolha e opção."

05 fevereiro, 2007

Citações, sobre o referendo (4)

No Público: "Ainda assim, o líder socialista teve de ouvir críticas. Uma delas partiu de Helena Matos, jornalista convidada para moderar o debate. Apontou o dedo a Marcelo Rebelo de Sousa e António Guterres por 'demissão de decisão': 'Criaram um problema a um povo. Imaginem o que teria sido nos anos 70 discutir o divórcio em Portugal', afirmou."

Ainda não me tinha lembrado disto! Já agora, a remoção do código penal do crime de sodomia, que referendo delirante-cómico teria dado, com sim/praticante, sim/impraticante, não/impraticante e até não/praticante (duvidam? Não há limites para a hipocrisia, quando estão em causa "públicas virtudes e vícios privados").

A propósito, uma amiga minha, médica, conhece muito bem o panorama do aborto em Portugal, e, ultimamente, o do aborto de luxo. É pena que a decência me impeça de escrever as obscenidades revoltadas que ela me escreveu, a propósito de alguns nomes que tem visto no jornal. Esta minha amiga é católica convicta mas, principalmente, e isto é que é ser médico, tem um enorme coração, sempre a bater em compasso com o sofrimento dos outros.

O "eduquês"

A discussão sobre o "eduquês" provoca-me logo uma atitude de defesa. É muitas vezes demasiadamente apaixonada e não circunscrita ao que deve ser. Por exemplo, todas as consequências práticas do construtivismo são dependentes do nível etário. Não posso discutir a aquisição de competências na educação superior, segundo o paradigma de Bolonha, com que concordo inteiramente, extravasando a situação de adultos jovens para a situação das crianças, de cuja pedagogia não sei nada. Já escrevi sobre isto, com maior aprofundamento.

Há pouco tempo, manifestei o meu espanto em relação à proposta de professores do 2º ciclo do básico poderem ser polivalentes. No Público de 31.1.2007, Guilherme Valente aborda o mesmo problema, com a minha concordância. Mas aproveito o seu artigo para uma citação importante.
"Mas julgo vislumbrar a mudança no horizonte. Este actual estádio supremo do eduquês deverá ser também o seu estertor. E julgo ter boas razões para pensar que a mudança vai acontecer com José Sócrates. Não é possível adiar mais e ele percebe onde está a essência do problema e acredito, e apoio, a sua atitude reformadora. Enganou-se com a ministra, mas estará a verificar o engano e irá corrigi-lo. Os próximos resultados vão ser piores e o chefe do Governo sabe que não haverá desenvolvimento nem diminuição das desigualdades sem outra escola, sem um ensino que desafie alunos e professores, que qualifique e forme, que realize as diferentes potencialidades de todos."
Pelos vistos, Guilherme Valente tem mais acesso aos segredos dos deuses do governo do que eu. José Sócrates vai impor-se? Sou mais descrente. Parece-me que o tempo de intervenção de Sócrates sobre os ministros se está a esgotar e que ele, com a maestria política que se lhe deve reconhecer, vai passar a jogar só pela positiva, por quem lhe dê vazas. O tempo é curto. Vem aí a presidência da UE, que não é tempo de problemas políticos domésticos. Parece-me que, a partir de Julho e até às eleições, a regra vai ser "não façam ondas", mas também a de não fazer nada para desacreditar ministros, por ineptos que sejam. Tenho o palpite de que o ME em 2009, em vésperas de eleições, será exactamente o ME de 2007.

Para os meus leitores dos Apontamentos sobre a educação superior, o que é que isto tem a ver? Porque tudo isto se aplica, talvez ainda mais, ao inefável MCTES. José Sócrates vai impor-se?

Citações, sobre o referendo (3)

Segundo o Público e notícia da Lusa, o bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes, afirmou que "a OM não permitirá os casos de clínicos que aleguem objecção de consciência no sector público, mas que realizem abortos no privado, por razões financeiras." Muito bem, mas se fosse ideia totalmente impensável não se perceberia porque é que o bastonário se lembraria de falar sobre coisa tão peregrina.

O mal é que, a seguir, vem outra: [no caso de ganhar o sim] "não iremos alterar códigos [JVC – código deontológico dos médicos] por causa de mudanças sociais".

Espantoso! Uma entidade corporativa, revestida de exagerados poderes legais, pode-se permitir exigir aos seus membros deveres que, na prática, impedem direitos legais dos demais cidadãos. Direito privado a sobrepor-se ao direito público, julguei que era coisa medieval. Ainda por cima, parece que a deontologia não tem nada a ver com a sociedade, a prática, os valores estabelecidos, apenas com a inspiração de Hipócrates, que até nem tem nada a ver com a teologia católica da vida humana.

Apoio o direito à objecção de consciência, mas como excepção muito cautelosa em relação ao ordenamento jurídico geral e apenas quando esse direito, individual, salvaguarda a plena eficácia do cumprimento, por outros, das obrigações legais.

Também tenho dúvidas em relação à objecção particularizada a actos concretos. Dou um exemplo: no tempo do serviço militar obrigatório, sempre admiti a objecção de consciência, mas em relação a toda a actividade militar. Mas seria tolerável a situação de um militar de carreira, com todos os legítimos benefícios profissionais, a objectar apenas o acto de disparar uma arma? Ninguém o obriga a ser militar, ninguém obriga ninguém a ser médico, sabendo que deve praticar tudo o que a lei permite que um cidadão espere de um médico.

Já agora, uma pergunta "parva": um médico que seja testemunha de Jeová pode invocar objecção de consciência para não prescrever uma transfusão sanguínea?

A coluna de João Caraça

Este meu "amigo fraterno" escreve mensalmente umas crónicas curtas, de grande qualidade, no suplemento de economia do DN. Deu-me agora o prazer de as publicar aqui. A honra é minha e aqui ficam registados, para hoje e para o futuro, os meus agradecimentos. Amizade à parte, maravilham-me sempre pela clareza aparentemente muito simples das ideias, aliada a uma grande concisão em que cada palavra tem de ser bem pensada. "Very british", coisa que ambos admiramos.

AS LIMITAÇÕES DE DAVOS

João Caraça

Quando o estado maduro de um período de transformação estrutural na economia se aproxima, naturalmente tolda-se a perspectiva clara do futuro. O ímpeto organizador de todo o funcionamento económico, e que permeou o da sociedade, vai-se espraiando: outras alternativas e problemas perfilam-se como igualmente legítimos. No caminho começam a surgir obstáculos e bifurcações. É esta a situação que vivemos hoje em relação à globalização, ou à “sociedade de informação e do conhecimento” ou, ainda, ao “novo paradigma da comunicação” (tudo declinações do mesmo fenómeno), que nasceram e cresceram a partir dos anos 1980 e 90. A única certeza económica que poderemos ter é a de que daqui por duas ou três décadas tudo estará muito diferente nas sociedades deste mundo. Tal como se passou connosco, em relação aos modos de vida de meados do século XX.

Mas como vai ser o mundo e como irá acontecer esta transformação ninguém sabe. Apenas poderemos extrair algumas implicações das grandes tendências que contextualizam a nossa actividade.

A primeira é, sem dúvida, a da necessidade crescente de energia para alimentar o desenvolvimento económico das sociedades humanas. Prevê-se que a procura de fontes primárias de energia duplique em 2050 (e triplique em 2100) em relação ao presente. O esforço de inovação na área da energia (das novas fontes à eficiência e às novas utilizações) vai ser dominante e quem não se preocupar e se preparar para ser parceiro activo neste domínio verá a sua relevância económica diminuir relativamente à dos outros. Uma leitura dos balanços bienais da OCDE sobre ciência, tecnologia e inovação é bem reveladora a este respeito, nomeadamente a do OECD Science, Technology and Industry Outlook 2004 (OCDE, Paris 2004).

Em segundo lugar, e este factor é sobremaneira importante para os países mais avançados, verifica-se um envelhecimento declarado nas nossas populações. Ora é bem sabido que a inovação resulta de uma atitude de abertura face ao exterior, de uma procura de oportunidades na fronteira dos conhecimentos, de uma rotura face ao estabelecido. Uma população envelhecida não exibe a mesma dinâmica inovadora de uma população em expansão, com dominância de estratos mais jovens.

E, em terceiro lugar, o modelo de competitividade das economias emergentes do oriente é baseado em salários baixos. Por quanto tempo resistirá a “economia baseada no conhecimento”, a que tanto nos orgulhamos de pertencer, à fragmentação induzida por esta feroz competição, sobretudo se for sustentada durante dez a vinte anos?

A imperfeição de Davos é a de não assumir integralmente a complexidade da realidade que vivemos: é impossível saber onde termina o económico e começa o social.

(DN, 1.2.2007)

04 fevereiro, 2007

Citações, sobre o referendo (2)

De Esther Mucznik, Público, 2.2.2007.
"Detesto também e talvez acima de tudo, a arrogância de muitos defensores do "não", o fanatismo intolerante e iluminado de quem se sente imbuído da missão de salvar o mundo. Faz-me lembrar demasiadas coisas."
Também a mim, partilhando o que não é difícil de adivinhar ,o que são essas demasiadas coisas, para uma judia.

Adivinha (II)

Resposta à adivinha: Joseph Ratzinger, nem mais nem menos, então apenas professor de teologia.

Nota leve

Não digam que todos os partidários do não são desprovidos de tolerância e de abertura de espírito. Leio no jornal que uma senhora do não, terminando uma discussão, concluiu que o que queria era que nascessem crianças, mesmo que comunistas! Já agora, acrescento eu, e pretos.

Já cá faltava


Ironicamente, "made in China", o país que, se não me engano, ainda há pouco tempo tinha aborto compulsivo para mães com mais do que um filho. E o bonequinho ficava um mimo em versão própria para dependurar do retrovisor.

(Fotografia: Público, 4.2.2007)

Adivinha

O mundo dá cada volta! Acabo de ler uma citação de um autor católico, por volta de 1968.
"Acima do papa, como expressão da autoridade eclesial, existe ainda a consciência de cada um, à qual é preciso obedecer antes de tudo e,no limite, mesmo contra as pretensões das autoridades da Igreja".
Quem escreveu isto? Mais logo direi, esperando entretanto as vossas apostas, em comentários.

Abuso da liberdade

À margem da discussão do referendo, tem aparecido alguma coisa sobre uma questão que também reputo de muito importante. As sociedades ocidentais estarão a ser exageradamente permissivas? Estamos confrontados com situações reais a que o ordenamento jurídico e politico tem de dar resposta rápida: a relação familiar de homossexuais, a adopção, o aborto, as drogas leves, etc. Estamos a ir precipitadamente na onda? Vamos ser "sabiamente" cautelosos? Mas não podemos varrer os problemas para debaixo do tapete, são cada vez mais as pessoas afectadas, são nossos concidadãos, merecem a nossa atenção.

D. José Policarpo escreveu no Público (31.1.2007) que "o exercício individualista da liberdade origina uma sociedade permissiva. O Estado gasta uma parte significativa das suas capacidades e energias a corrigir abusos de liberdade".

A meu ver, não há abusos pré-definidos da liberdade. Temos de os aprender e aprender é comprar um livro, é pagá-lo. Hoje, a minha noção de liberdade e direitos/deveres meus e dos outros é muito diferente do que era há 30 anos. Isto é uma aprendizagem individual, mas que, afinal, reflecte uma aprendizagem social, sem gurus. Quando D. José Policarpo, à guru, fala de abusos da liberdade, fala dos seus preconceitos, não dos que a história e a praxis social vão definir como abusos.

A liberdade pode e deve ser condicionada, mas pelas lições dessa liberdade. Eu abdicarei de qualquer coisa da minha liberdade quando vir que ela se choca com a liberdade dos outros, mas nunca porque alguém me venha dizer antecipadamente o que é o abuso da liberdade.

03 fevereiro, 2007

O aborto e o aconselhamento

Nos últimos dias, Vital Moreira tem aparecido como paladino de uma ideia que estava esquecida no início do debate: a de que o aborto a pedido exigirá uma fase breve de aconselhamento e apoio psicológico à decisão da mulher, obviamente sem que isto desvirtue o essencial da despenalização e sem que tenha efeitos decisórios. Sei que isto é uma exigência legal na Alemanha, pelo menos.

Estou em inteiro acordo, como certamente todos os que, defendendo a despenalização, não concordam com a ideia de uma banalização do aborto (mas será que as mulheres alguma vez permitirão essa banalização?!). Simplesmente, penso que a introdução dessa fórmula na pergunta a referendar seria complicada. Mais importante, é extemporânea. Em alternativa, proponho aos partidos que apoiam a despenalização (PS, PCP, BE, Verdes) que emitam urgentemente uma declaração pública em que se comprometem a introduzir esta cláusula na futura legislação.

O aborto na União Europeia


Só 5 países europeus não admitem o aborto a pedido: Portugal, Espanha, Reino Unido, Luxemburgo, Polónia. Mesmo assim, a aplicação prática da lei na Espanha e no Reino Unido acaba por abranger grande parte das situações a pedido.

Com o limite de despenalização total até às 10 semanas só há a Eslovénia. A maioria (15 países) permite até às 12-14 semanas.

Conclusão. A Europa voltou à barbárie, à cultura da morte, à perda dos valores morais, que será dela se não mantivermos nós a chama, irredutíveis gaulezes da aldeia do Astérix? E que estúpidos são todos esses europeus, que não compreendem os nossos argumentos em favor do não!

Outra conclusão, como na anedota do desfile militar: só o meu filho é que ia com o passo certo, os outros iam todos com o passo trocado.

(Extraído do Público, 3.2.2007)

Porque voto sim (I) - a ciência

(Nota longa mas que reputo importante. Peço-vos paciência para a leitura)

Vou escrever esta nota com alguma relutância, esperando que, no fim, os meus leitores compreendam porquê: porque a ciência não deve ser chamada para este debate. Como alguns saberão, sou médico de origem e os meus graus académicos são em medicina. No entanto, toda a minha vida profissional foi de investigador em ciências biológicas. Não posso deixar de dizer alguma coisa sobre a segurança "científica" da noção de vida humana de alguns, mas desde já afirmo que, para mim, é questão sem sentido e que não trarei mais para este debate.

Cientificamente, o que é a vida humana? Comecemos por distinguir os termos, vamos a vida, depois a humana. Vida é uma abstracção e é bom que nos entendamos sobre isto, em termos científicos, mais localizadamente na biologia. Nela não há axiomas, nem sequer postulados, e alguns conceitos "abstractos", vida, consciência, mente, etc., não têm qualquer sentido absoluto, são formas operacionais de se lidar com características comuns, objectivas, de variadas entidades. O que há, de facto, são organismos vivos, como entidades objectivas, descritíveis em propriedades a que, no seu conjunto, chamamos vida. Estou a imaginar o leitor a pensar "que preciosismo". Vamos ver o que se passa na zona de fronteira, aquela que desafia sempre as simplificações.

Todos os dias preparava culturas celulares. Num frasco, numa estufa de laboratório, uns milhões de células alimentavam-se e dividiam-se. Mais, tinham controlo dessa divisão, comunicavam entre si, funcionavam como tecido. Não cabe aqui discutir esta hierarquia, tecido, órgão, sistema, organismo, mas anote-se que, apesar de estar no primeiro nível, o de tecido, já estou com um pé na discussão da vida. Quem olhasse para aquele frasco diria que havia ali vida? E se fossem células humanas? Até eram muitas vezes, originárias de pessoas com vida e história pessoal. No entanto, não passa pela cabeça de ninguém chamar de organismo vivo aquela população de células.

Um homem morre, separa-se-lhe do corpo a alma, acaba a vida. No entanto, muitos tecidos permanecem vivos durante mais ou menos tempo. Com vivos quero dizer, têm metabolismo e expressão génica, creio que as duas principais manifestações da "vida". E bem bom que assim é, porque, de outra forma, seriam muito difíceis as transplantações. Então como se caracteriza essa vida que ainda permanece no morto?

Ainda outro exemplo. Creio que ninguém duvida de que o agente causador de qualquer doença infecciosa é um ser vivo. Está na base do conceito de infecção. Descendo até às bactérias, sem dúvida. Mas um vírus é um ser vivo? Para mim, virologista, claro que sim, mas não é discussão arrumada e exigindo a tal flexibilidade da noção de vida. Pior ainda, o caso bem conhecido da doença das vacas loucas, cujo agente infectante, o prião, que se "multiplica" (não é característica essencial da vida?), é uma simples proteína.

Voltemos ao conceito, este prático e objectivo, de organismo vivo. Afinal, não é assim tão simples. Um esporo de um bacilo ou de um fungo, uma semente, um ovo (o que o ovo tem dado de discussão em relação a este referendo!), são organismos (seres, para quem preferir) vivos, embora inertes? Repare-se que não estou a falar de gâmetas, como os óvulos e os espermatozóides, mas de entidades que dispõem da totalidade da informação genética e que estão programadas para se desenvolverem em novos organismos adultos ou maduros. O feto de um mamífero não é mais do que isto, com a diferença que habita o útero feminino. Isto já vai longo, não posso desviar-me, mas creio que já disse o suficiente para perceberem uma coisa essencial. A vida é um contínuo, não tem momentos miraculosos.

Passemos à adjectivação. Creio que não haverá biólogo que não se ria se apanhar uma discussão sobre "vida vegetal" e "vida animal". Há vegetais e animais, mas vida, repito, como abstracção, não é adjectivável, é única, embora com manifestações objectivas variadas (e nem é assim tão claro; lembre-se que, durante muito tempo, os fungos foram considerados vegetais). "Humano" só entra aqui porque somos humanos, como diria La Palisse. E porque, como humanos, inventámos a religião.

Como isto já vai longo, vou saltar por cima de coisas que só têm a ver com animal (leia-se mamífero): o que é "o" momento da fertilização, um processo obviamente não instantâneo? Há vida antes da reorganização do oócito, processo essencial para que ele dê origem a um embrião? Pode haver vida em condições de total inviabilidade, se um embrião não faz a nidação no útero? Há "uma" vida humana, soprada na fertilização, quando um único ovo pode dar origem a dois gémeos univitelinos? Ou cada um deles tem só meia alma?...

Mas vou entrar no jogo do "humano", presumindo que a definição tem a ver com a mente e a consciência. Julgam que é coisa linear? O chimpanzé tem inteligência prática e tem a noção de si, a consciência, gosta de se ver ao espelho. E o Homo erectus não era homem? No entanto, o que é que sabemos das suas capacidades psíquicas? Mas vou ontinuar a dar de barato que têm razão, que vida humana se define a partir do momento mínimo da possibilidade de desenvolvimento de um cérebro humano. Afinal, é simétrico à morte, hoje indiscutivelmente definida por critério cerebral. Mas julgam que isto facilita? Afinal, todos os mamíferos têm cérebro. Assim, vou tentar dar o máximo benefício da dúvida (violando todavia o meu rigor científico) e dizer que aceito um "cérebro humano" quando se estabelece (mas, repito, como em todos os vertebrados) a diferenciação entre o córtex cerebral e o mesencéfalo, O QUE ESTÁ LONGE DE DIFERENCIADO ÀS 10 SEMANAS DE GRAVIDEZ.

Termino como comecei. Espero não ter de voltar a falar em termos científicos, porque a ciência não tem nada a ver com este referendo. Vou continuar neste debate como cidadão, mas não como cientista. Defensores do não, respeito as vossas convicções, a certeza religiosa que têm de que a vida começa num momento mítico só definível entre vós e a vossa divindade, respeito a fé, mas também respeito ainda mais a ciência, pilar da minha vida. Por isto, em contrapartida, peço aos defensores do não que andam a esgrimir argumentos "científicos" em que são incompetentes ("a ciência prova que...") ou a dar a ouvir batimentos de uma coisa a que chamam coração (desonestidade, porque não é mais do que um primeiro aglomerado de células de músculo cardíaco, obviamente já dotadas do poder elementar de contracção automática, os tais batimentos), repito, volto a pedir-lhes que respeitem a ciência dos outros como eu respeito a religião dos outros.

Duvido da eficácia deste apelo. Um cientista só pode ser um bom cientista se mantiver a mente aberta, tolerante e sempre duvidosa. Um fanático só pode ser um bom fanático e merecer o paraiso na espiral autoalimentadora da intolerância, das certezas absolutas e do terrorismo intelectual.

02 fevereiro, 2007

Ainda a Esmeralda (2)

Como escrevi, parece-me que a justiça está numa grande embrulhada com o caso da Esmeralda. Desejo vivamente que isto sirva para um grande reflexão sobre a nossa justiça.

Relembremos. Quando um tribunal de primeira instância decidiu atribuir o poder paternal ao pai biológico, os pais "adoptivos" (entre aspas, porque sabemos que, legalmente, não o eram) pretenderam interpor recurso, coisa essencial no funcionamento da justiça. A Relação de Coimbra indeferiu a admissão do recurso porque, legalmente, o casal Gomes não era parte no processo. E é com base nisto que faz lei a sentença do tribunal de primeira instância que atribuiu o poder paternal ao pai biológico e, afinal, o que justifica que o sargento Gomes, segundo essa sentença, passou a ser sequestrador.

Agora, vem o Tribunal Constitucional dizer que o sargento Gomes tinha direito a interpor recurso. A meu ver, isto quer dizer uma coisa muito simples. Ele vai interpô-lo amanhã, a sentença de atribuição do poder paternal ao pai biológico fica suspensa, tudo pode até voltar ao tribunal de primeira instância, se a Relação aprovar o recurso. Até quando tudo isto se arrastará?

O tempo pode não parecer importante para uma justiça que, tradicionalmente, é figurada com uma venda sobre os olhos. Mas é muito importante para uma criança cujo tempo é o da educação, dos brinquedos, dos afectos e que nada sabe de tribunais.

A própria jurisprudência elementar está desafiada. A primeira decisão foi quando a Esmeralda ainda dava os primeiros passos. Agora, tudo vai voltar ao princípio, mas quando ela já tem cinco anos. Espero que os juízes saibam lidar com isto.