07 fevereiro, 2007

Porque voto sim (III) - a hipocrisia

Esta nota não cabe bem na discussão dos motivos para eu votar sim, a não ser por alguma infantilidade birrenta. Quero dizer que, se me provocam, por vezes não resisto. E os "não" estão a fazer coisas que, mesmo que eu não estivesse convicto, me levariam a votar "sim", só para me desmarcar e os chatear.

Provavelmente, os formuladores da pergunta, bem intencionados, não pensaram que a palavra certa devia ser descriminalização e não despenalização. Para o vulgo, que é indiferente a um código penal que nunca lerá, despenalizar quer dizer só que as mulheres que fazem um aborto não vão para a cadeia. Mas não é que agora há tantas boas almas do "não" que vêm dizer o mesmo (ou, em versão mitigada, que apenas devem cumprir tarefas cívicas, como castigo)?

Não percebo. O Código Penal não é um manual de moral e de bons costumes, não é um catecismo de pecados a exibir à censura pública, é uma listagem de crimes e não sei como é que pode haver crime sem penalização (independentemente das atenuantes ou da suspensão da pena, mas que não é verdadeiramente uma despenalização).

Esses senhores não são parvos e perceberam, muito antes, o que escrevi na minha nota anterior. A nossa cultura é permissiva para com o aborto, e muito bem, porque as culturas se fazem por mistura de muitas vivências, em que a convicção religiosa é apenas uma parcela e nem sequer, socialmente, ao nível dos letrados. Eles perceberam que ninguém deseja ver uma mulher na prisão por causa de um aborto. Então, duplicam o discurso. Para os letrados fundamentalistas, o "não" puro e duro, para o eleitor comum, crime sim mas sem condenação. Não me recordo de ter assistido alguma vez a tamanha desonestidade intelectual. Nem no fascismo, que até era intelectualmente coerente.

E o que teria sido um referendo sobre a despenalização da homossexualidade/sodomia, crime até ao 25 de Abril, que hipocrisia seria! Sim/não praticante (abertura de espírito), sim/praticante (interesse directo, cada vez mais assumido, e muito bem), não/não praticante (ah, "ganda" macho!), não/praticante (coragem para se assumirem publicamente?). E, neste referendo, não haverá também "não/praticante"?

Há outra coisa de que não falam, os fundamentalistas do "não", a dos outros participantes no aborto. Admitem que a mulher sim, coitada, não pode ir para a cadeia. Mas em que é diferente a responsabilidade de quem se solidarizou com ela? Vou afastar a questão contaminante do negócio. Refiro-me só aos casos, e conheço bastantes, que promovem ou executam o aborto apenas por solidariedade para com o sofrimento dessas mulheres.

A meu ver muito bem, o grupo parlamentar do PS já anunciou que, caso vença o "não", não apresentará nenhum projecto de lei hipócrita, de pseudo-despenalização. É certo que a primeira proposta nesse sentido veio de uma sua deputada, Maria do Rosário Carneiro, mas a questão é de se saber o que faz essa senhora, independente, no grupo do PS. E, como bem disse Maria de Belém, "é o mesmo que não se querer a fogueira e ser a favor da Inquisição". Os do "não" que descalcem a bota. Infelizmente, quem nem a pode descalçar são todos aqueles cidadãos anónimos que votarem "não" e que não têm condições para intervenção política subsequente.

"O aborto é crime. Mas pode-se fazer. Mas é proibido. O que acontece a quem o faz? Nada". Grande gato fedorento! Mas, infelizmente, a vida não se resume ao humor, por melhor que este seja.

P. S. – Relendo esta nota, dou pelo uso da palavra "fundamentalista" e não a retiro. O 11 de Setembro só nos deve fazer pensar no fundamentalismo islâmico? Tolice, dir-me-ão, fundamentalismo não quer dizer obrigatoriamente terrorismo. Mas sabem quantas bombas já explodiram, nos EUA, em clínicas que facultam o aborto?

1 comentário:

lino disse...

Muito bem dito, João.