19 dezembro, 2007

Soturnidade, melancolia, depressão de ilhéu

Camões, Bocage, Antero, Cesário, Pessoa, qual é o meu poeta? Não sei, creio que depende muito dos momentos e dos estados de alma. Neste aspecto, talvez Cesário seja o mais contraditório, alegrando-me com o ramo de papoilas, ou, em dias como hoje, só me lembrando de que:

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

P. S. E um ilhéu sente-se no cinzento de mar e céu e sofre.

3 comentários:

JVC disse...

Podia ir como PS, mas vai assim. Fora os Lusíadas, claro, isto é para mim o mais excelente poema português. Razões muitas, mas que mais não foram os últimos versos, precursores do surrealismo.

Mário Lima disse...

Boa noite.
Estou a passar neste seu blog para dizer:
Um Bom Natal e Um Novo Ano Próspero.
Sãoos meus votos para o Amigo.
Um abraço.
Mário Lima

M.C.R. disse...

Está para sair uma extraordinária edição do livro de Cesário Verde ilustrada por Pedro Sousa Pereira. Vale a pena. Vale mesmo a pena.