07 dezembro, 2007

Nota gastronómica (XLIII)

Alcatra da Terceira

Terminei assim a minha última nota gastronómica: "Fica-me, dito isto, outra pergunta. Mas afinal a alcatra da Terceira é com vinho tinto ou branco? "Ele há cada questão..." Escreverei sobre isto uma próxima nota." É o que vou fazer.

Ao contrário da cozinha francesa, não temos grande tradição de cozinha de vinho (claro que não estou a falar do uso moderado do vinho, em guisados, por exemplo, como tempero). Claro que temos a chanfana, o frango na púcara, o polvo e a molha açorianos, outras coisas mais, mas realce absoluto para a alcatra da Terceira. Suscita uma questão interessante: por razões históricas, mudou um ingrediente essencial, o tipo de vinho. Deve-se aceitar a mudança como definitiva ou deve-se recuperar a origem?

O panorama vitícola açoriano mudou radicalmente no século XIX. Desde tempos imemoriais, não há relevo para o vinho tinto e o grande vinho açoriano é o verdelho, ou como vinho de mesa ou como generoso, com a célebre história de orgulho açoriano de ser o vinho mais importado pela corte russa. Tal como na Madeira, também havia terrantês, bem como arinto, mas em pequena proporção. O cultivo da vinha era característico, em pequenas curraletas limitadas por muros de basalto, como ainda hoje se podem ver no Pico e no excelente museu do vinho dos Biscoitos. No caso dos Biscoitos, menos no Pico, continua ainda a haver uma característica que me agrada imenso, embora haja quem não goste: o verdelho que ainda se produz (Donatário, Da resistência, ambos da casa Brum) tem um ligeiro sabor a maresia, amariscado. Os Açores são "quando o mar galgou a terra".

A filoxera deu cabo de tudo. Incrivelmente, em vez de se seguir ao inevitável arranque das vinhas o replantio com as castas históricas, importou-se a uva Isabel, californiana, porque muito resistente. A partir daí, todo o vinho popular açoriano é o vinho de cheiro (aqui, o chamado morangueiro), coisa execrável. Só poucas casas, principalmente a casa de Chico Maria Brum, é que mantiveram uns resquícios de verdelho. Da mesma forma, só os mais abastados é que bebiam vinho tinto ou branco, ido do continente (em garrafão, como me lembro do Grão Vasco em casa dos meus pais).

Já estou a trescrever, vamos à alcatra. Não conheço nada que date a sua origem, mas é certamente ancestral. É um prato da mais velha técnica culinária, relacionada com as daubes e até com velhas referências a cozinha de vinho dos romanos. O uso generoso da pimenta preta e da Jamaica, em grão, evoca a volta do largo e o comércio das naus das Índias, troca de frescos e de especiarias. Por tudo isto, ponho as minhas mãos no fogo por que a alcatra é muito mais velha do que a filoxera. Então, certamente, a alcatra era feita com verdelho.

Depois, sou do tempo da alcatra dupla, coisa que sempre causou discussão gastronómica familiar. Na minha casa e em muitas outras, a alcatra era feita com vinho branco do continente. No entanto, quando ia em miúdo à Terceira e me fartei de comer alcatra em funções de Espírito Santo por tudo o que era freguesia, era de vinho de cheiro, o vinho de que o povo dispunha. É hábito arreigado. Deve ser consagrado ou deve-se recuperar a história genuína? Honestamente não sei, embora possa dizer é que nunca por nunca faço uma alcatra com vinho de cheiro ou vinho tinto, sempre um bom vinho branco seco (normalmente arinto, de Bucelas).

E verdelho, agora que volta a haver na Terceira verdelho de mesa? Recorda-me alguma tradição familiar. Alcatra era coisa que se fazia com frequência lá em casa, sempre com vinho branco, e creio que era uma alcatra inegualável, que nunca vi primor de papilas gustativas como as da minha avó. Havia excepção para a alcatra do dia de Espírito Santo, alcatra de vinho dos Biscoitos. Não podia ser todas as vezes, por falta do vinho, mas, indo com alguma frequência a Angra, o meu pai aviava-se com umas garrafas, das quais parte se destinava obrigatoriamente à alcatra.

Com tudo isto, conclusão inevitável, um compromisso aceitável. Não há produção de verdelho que dê para todas as alcatras da Terceira, continuem a fazê-las com vinho de cheiro. Que as casas de maior recordação senhorial usem um bom vinho branco, como eu. Mas se a quiserem valorizar ao máximo, como se diz neste escrito que o Luís Brum me mandou, verdelho! Eu é que fico em dificuldade pessoal, porque tenho forte relutância em usar que não para beber as ofertas que recebo de Donatário.

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