17 janeiro, 2007

Artigo de um esquerdista perigoso

Faço por respeitar os direitos de autoria dos jornais, mas, tanto quanto sei, o Público permite a divulgação dos artigos dos seus colunistas dois dias depois. Assim, vou transcrever um artigo notável do Gen. Loureiro dos Santos, publicado em 11.1.2007. Como se sabe, trata-se de um perigoso esquerdista, com um ódio visceral aos EUA...

Reforçar as forças no Iraque, agora?

O relatório Baker-Hamilton aconselhava a concentração do esforço dos militares no Iraque na formação das forças nacionais, que assumiriam, faseadamente, as responsabilidades da segurança do país, até ao primeiro trimestre de 2008, altura em que as brigadas de combate americanas teriam deixado o teatro de operações (TO). Nas relações externas, sugeria a negociação com os Estados vizinhos, incluindo a Síria e o Irão, visando criar condições para efectuar a manobra militar.


Aguardava-se que fosse determinado o início da retirada, e iniciado o processo negocial, o que poderia travar a actual deterioração do potencial de combate terrestre da superpotência, em perigo de ruptura. Os EUA recuperariam a capacidade de intervir com forças terrestres em qualquer local onde possam emergir novas crises (como no Corno de África), prevenir o alastramento regional do conflito iraquiano, actuar em força no Afeganistão e agir com determinação para resolver o impasse israelo-palestiniano.


Surpreendentemente, Bush resolveu reforçar as forças no Iraque, em vez de mandar começar o processo de retirada. Contra a opinião da Junta de Chefes de Estado-Maior e dos comandantes do Central Command (general Abizaid) e do Iraque (general Casey), assim como da maioria da população norte-americana. Curiosamente, há perto de quatro anos, tinha-se negado a seguir a proposta de aumentar significativamente os meios militares para a estabilização do Iraque, que o então CEME americano considerava insuficientes.


Substituídos os responsáveis no terreno que discordam do reforço por outros que o têm vindo a advogar, Bush avança para (mais) uma "nova estratégia". Qual é a sua ideia: inverter o curso da situação no Iraque e alcançar a vitória? Ou fazer um reforço temporário, aliviando a pressão actualmente existente no terreno e iniciar conversações com os vizinhos, com a finalidade de, imediatamente a seguir, começar a retrair o dispositivo?


Pelas notícias vindas a lume, aquilo que o Presidente americano pretenderá é um impulso que consiga fazer regressar as hipóteses de vencer a guerra. Pelo que transpira dos planos militares, as primeiras operações visam criar condições para passar aos iraquianos a responsabilidade da segurança de Bagdade (no próximo Verão?).


Segundo a doutrina de contra-subversão conhecida como mais adequada (consta do manual de contra-insurreição do exército dos EUA recentemente aprovado), a submissão da insurreição exige o desenvolvimento de três manobras, intimamente coordenadas, das quais a manobra militar ficará a cargo das forças norte-americanas, embora apoiadas pelas forças iraquianas que estiverem operacionais e não recusarem (?) empenhar-se em combate. 
As outras duas manobras (político-psicológica e económico-social), cujo sucesso materializará a vitória, serão encargo do governo xiita, contando com a ajuda que os EUA entenderem e puderem oferecer. Os americanos terão dificuldades crescentes de investir grandes somas financeiras no Iraque. Tanto por dificuldades orçamentais como por eventual recusa dos democratas maioritários nas duas câmaras do Congresso. E o governo iraquiano colocará cada vez mais reticências às interferências políticas e militares dos EUA. 


Se nos cingirmos à manobra militar, aquela que se encontra verdadeiramente em causa, pois, sem segurança, as outras manobras não terão sucesso, há que indagar se ela, a processar-se conforme a doutrina aconselhável (ausente até agora), apresentará potencial adequado e duração temporal suficiente. O que implicará necessidades acrescentadas em relação à data da invasão, tendo em atenção que irá ser iniciada cerca de quatro anos depois de o dever ter sido. 


Convém esclarecer que, na contra-subversão, a demografia assume importância decisiva, do que resulta a necessidade de talhar o efectivo da força em função das suas características. Uma vez que todos os iraquianos, exceptuando os curdos, serão ameaças potenciais ou o meio onde elas se refugiam (insurreição e luta sectária), a expressão da presença militar deverá rondar 400.000/500.000 efectivos. Como os quatro anos já decorridos permitiram a consolidação das ameaças, a sua infiltração das forças policiais e militares nacionais, o seu acesso ao próprio poder político em funções, o estabelecimento de teias de fidelidades e de ódios com desejo de vingança que é difícil destruir, há razões para suspeitar que nem mesmo 500.000 combatentes alcançariam resultados visíveis. E, para tal se concretizar, a permanência deste efectivo deveria ser garantida por vários anos, certamente mais do que se o volume adequado de forças tivesse avançado em 2003.
Lamentavelmente, são completamente impossíveis reforços desta dimensão. Muitos especialistas, a começar pelas chefias militares de Washington e pelos comandantes agora substituídos, afirmam que o exército pode entrar em ruptura, apenas com o envio de 20.000/30.000, mesmo por um período de tempo reduzido. Para não falar das dificuldades financeiras que a execução de um projecto destes implicaria, caso fosse aprovado no Congresso. 
A identificação das milícias com os principais partidos xiitas (a milícia Sadr com o CSRI, partido maioritário; a Mahdi com Moqtada al Sadr, apoiante do primeiro-ministro, o chefe do partido Dawa) torna irrealista a hipótese de as eliminar pela força. Os seus elementos encontram-se disseminados no exército e na polícia iraquiana, dos quais constituem a coluna vertebral. Tudo indica que elas continuarão a ser consideradas pelos xiitas como os últimos garantes da sua capacidade de submeter os sunitas e como sustentáculo da disputa política interna própria. Caso os norte-americanos venham a ultrapassar os limites que, no entendimento dos xiitas, ponham em causa este aparelho de força, o governo iraquiano poderá reagir, negando as pretensões daqueles que, cada vez mais, a população considera ocupantes. 
O Irão será importante em todo este contexto: deseja um Iraque o mais colaborante possível e pretende criar dificuldades aos americanos, garantindo a consolidação da sua hegemonia regional e pressionando o Ocidente de forma a obter cedências no dossier nuclear.


A insurreição sunita ligada aos baasistas incendiou-se com a execução de Saddam, cujas imagens foram intencionalmente divulgadas por radicais xiitas no poder; muitos dos líderes sunitas que aceitavam participar no processo político estão a afastar-se e a refugiar-se no estrangeiro, deixando o caminho cada vez mais livre aos jihadistas ligados à Al-Qaeda, que tudo farão para solidificar o Estado islâmico. Os árabes dos países vizinhos, com os sauditas à cabeça, tentarão reforçar a insurreição, apoiando mesmo os terroristas de que têm pavor, a fim de impedir a ascensão do poder do Irão (e do xiismo) na região. 
Por sua vez, os curdos tenderão a afirmar progressivamente a sua independência de facto, o que provocará o alarme dos Estados onde constituem minorias, com destaque para a Turquia. Também não é de afastar o apoio turco à insurreição, neste caso para criar problemas no Curdistão iraquiano.


Concluindo: na impossibilidade de dispor dos efectivos necessários, qualquer aumento da força norte-americana, por maior que seja, não parece ter condições de resolver a situação. Arrisca-se até a agravá-la.
A solução menos má seria pôr imediatamente em prática as recomendações do relatório Baker-Hamilton, procurando preservar a capacidade de combate da força americana no teatro, começando a posicioná-la para a retirada, e colocando alguns dos seus componentes em condições de evitar o envolvimento directo e aberto dos vizinhos no conflito. Simultaneamente, negociar com quem possa ter influência no processo interno iraquiano, especialmente com o Irão e a Síria. O que pode aconselhar apenas um pequeno reforço temporário, que auxilie as operações de rotura de combate.


Tudo indica que o objectivo de Bush é evitar ser conhecido, historicamente, como o presidente que mandou invadir um país, no primeiro mandato, e retirar, no segundo, depois de ser derrotado. Existem muitas probabilidades de a "nova estratégia" se traduzir num ainda maior agravamento da situação no Iraque.

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