Ainda com limitações de escrita, vou publicando, para marcar presença. alguns textos anteriormdente escritos. A maioria dos leitores não se deve ter apercebido de que a última semana (este texto doi escrito em 20 de Janeiro) entra na história com uma das mais promissoras conquistas científicas, a primeira clonagem bem sucedida de um ovo humano. Desculpem alguma explicação, mas que creio necessária. O ovo humano resulta da fertilização de um oócito, feminino, por um espermatozóide, masculino. Cada uma destas células é haploide, só tem 23 cromossomas, em cópia única. Depois da fertilização, o ovo passa a ter um conjunto duplo de cromossomas, em pares. Todos nós, todas as nossas células, depois desta duplicação genética, dizem-se diploides, devendo metade ao pai e metade à mãe. Só em duplicação genética é que se desenvolve a vida
Não é bem verdade, porque afinal mãe é mãe e todos nós devemos mais à mãe do que ao pai. No ovo, o núcleo, com o total diploide dos cromossomas, é paritário, mas todo o resto da célula, de enorme importância, é da mãe. Até há genes, os mitocondriais, que eu e todos os meus amigos homens só recebemos do lado da mãe, os do pai perderam-se pelo caminho difícil da fecundação.
Isto quer dizer que para a formação de um ovo, o oócito feminino (feminino é sempre o "receber"!) está pronto a desenvolver a informação genética diploide resultante da fecundação. mas também pode fazê-lo com um outro núcleo diploide, de células adultas, masculino ou feminino, introduzido num oócito de que previamente se esvaziou o núcleo. É a clonagem. Na prática, o essencial é que este ovo e o animal que dele resultar (lembram-se da ovelha Dolly?) não é a "mistura" de pai e mãe mas sim a cópia de quem forneceu o núcleo e os cromossomas (e assim se pode ser, verdadeiramente, filho da mãe...).
Então vamos produzir seres em série, geneticamente iguais? Tolice, seria a clonagem reprodutiva, só um louco a faria e dificilmente, com todas as regras de bioética que temos hoje. Outra coisa é que este clone, a qualquer momento, me/lhe permite dispor de
células estaminais (péssima tradução, vou escrever células indiferenciadas, já explico porquê).
Todas as nossas células contêm o mesmo conjunto de genes, mas a natureza é económica. Porque é que um neurónio há-de produzir um enzima pancreático ou uma célula sanguínea produzir um neuro-transmissor? É o que se chama a diferenciação, cada célula de cada órgão adulto tem uma data de disjuntores genéticos desligados, para "poupar electricidade". No ovo, não pode ser assim, as células têm a capacidade de se orientar para as muitas estradas da diferenciação. Hoje conhecemos bastante bem, e podemos usar, quais os factores biológicos, os "sinais de trânsito", que fazem uma célula ir para célula sanguínea ou para célula do fígado.
Na prática, isto quer dizer que as células indiferenciadas, com esta capacidade de evoluírem em múltiplas direcções, são capazes de produzir novas células onde já tudo parecia morto: num enfarte do miocárdio, numa lesão da medula de um tetraplégico, no pâncreas de um diabético, na retina de um cego, no cérebro de um doente de Parkinson.
É claro que o Vaticano já veio dizer que isto era a mais horrorosa das manipulações da vida humana. Diz da pior maneira, usando argumentos cientificamente insustentados, como o de que é possível obter facilmente células indiferenciadas por outros meios. É extremamente difícil obtê-las de um adulto nos casos típicos em que pode precisar delas (por exemplo, um doente com enfarte do miocárdio). É possível obtê-las por altura do parto, do sangue do cordão umbilical, mas isto significa que cada pessoa teria de ter congelado, toda a vida, um armazém de células indiferenciadas. A clonagem permite é esta coisa simples: ter as minhas células indiferenciadas quando preciso delas.
Infelizmente, receio que não seja só o fundamentalismo religioso a condenar estas enormes explorações do domínio pelo próprio homem da inexorabilidade do seu destino. Há toda uma enorme relutância cultural em relação aos "perigos da ciência". É certo que há razões para receios e a tragédia de Hiroshima deve estar sempre presente. Mas parece-me inegável que o homem tem sabido aprender com cada tragédia. Pior até são as coisas mais pequenas, mas também as que mais devem fazer pensar em termos realistas. Por exemplo, morrem anualmente milhares de pessoas com infecções por bactérias resistentes a antibióticos, na maior parte dos casos por erro humano. Mas quantos milhões de vidas são salvas por antibióticos?
Portanto, nada disto me tolhe o tradicional optimismo generoso (utópico?) dos cientistas. Principalmente porque este optimismo é lúcido e são os cientistas os primeiros a estabelecerem o mais seguro dos sistemas de controlo das suas conquistas. E, já agora, porque, admitindo excepções aberrantes, a ciência é uma acttividade que motiva homens superiores e essa superioridade não fica esquecida quando se apaga a luz do laboratório.