31 maio, 2006

Os salários da função pública

Foi manchete há alguns dias: "os salários na função pública portuguesa são 50% superiores aos privados". Há muito tempo que não lia título tão cretino. Mas não terá entrado logo na cabeça de milhares de leitores? Não vai logo ao encontro da ideia ventilada de que os funcionários públicos são privilegiados? Começo por esclarecer que só fui funcionário público durante curtos quatro anos da minha vida, o que nem chega para os aproveitar para a reforma.

Muito se fala da nossa "incapacidade" para a matemática. O que há é uma pasmosa inumeracia na nossa educação. Como falamos de jornalistas, tive curiosidade em ir ver o que são os nossos cursos de comunicação social. Alguns não apresentam os currículos. Dos que pude ver, sete, só um inclui a estatística (lá tenho sempre de aterrar na Madeira!). Não é importante para a formação dos jornalistas e para a sua critica a coisas como esta notícia ou as sondagens eleitorais? Ou para valorizar as oscilações do Psi-20, os "rankings" das escolas, etc. Já agora, também a maioria dos cursos despreza o português, a história e a geografia, em relação a coisas muito bonitas, como a teoria da comunicação, a semiótica, a psicossociologia da comunicação, o marketing político (se calhar o Carrilho tem alguma razão), etc. Nos EUA, os jornalistas são em maioria, coitados, simples bacharéis em humanidades! Mas sabem escrever e ter uma visão critica, que não depende do seu conhecimento da teoria da comunicação. Entre nós, as universidades continuam a "gozar com o pagode".

E nem falo do correlacionado cálculo de probabilidades, tão essencial na nossa vida corrente e que surpreende sempre a minha gestora de conta quando eu tiro a calculadora antes de aceitar uma sua proposta de investimento. Ou quando peço ao meu médico para chegarmos a uma conclusão final de probabilidade de efeitos e custos, em relação a uma determinada terapia. Imaginam quanta gente instruída já me respondeu que é igualmente provável, no totobola, acertar em todos os jogos e errar todos os jogos? É um teste que me diverte sempre. Já agora, desafio a comentários sobre este problema tão simples.

Não vou transformar esta nota em lição de estatística elementar, mas vou lembrar uma regra básica: uma média não significa nada, se não vier acompanhada pelo desvio padrão, com o que facilmente se calcula o intervalo de confiança. Vou dar um exemplo. No meu último exame, a média foi de 14. Noutra disciplina do meu colega X a média foi de 12. Conclusão jornalística: JVC é melhor professor ou então menos exigente do que X. Nada disto. O meu desvio padrão foi de 3 e, para uma probabilidade de 95%, o que é preciso comparar é o meu intervalo de confiança que é, grosso modo, de 14±6. Se ele se sobrepuser, mesmo que minimamente ao do meu colega X, nenhuma conclusão é possível.

Lembram-se de uma velha piada de um humorista que agora não recordo? "A estatística serve para demonstrar que se eu comer um frango e tu ficares em jejum, cada um se regalou com meio frango". Neste caso, o desvio padrão é igual à média, 0,5, o que significa que o intervalo de confiança dessa média está entre -0,5 e +1,5. Tentem lá fazer estatística com isto!

Voltando à notícia, logo uma coisa estranha que devia logo ter alertado os jornalistas, em simples termos de sentido critico, quando se vê a imagem que a acompanha. Ordenados pela relação entre salário médio da função pública e da actividade privada, estamos à cabeça, progredindo a série do Eurostat, para baixo, de acordo com a ideia que temos da riqueza e do desenvolvimento dos vários países europeus. Na cauda, estão os pobrezinhos da Suécia e do Reino Unido, com 101, da Finlândia, com 94, e do Luxemburgo, com 93. Tenho pena dos seus funcionários públicos, que ganham tão mal! Ou são os outros seus trabalhadores que, em média, ganham muito mais do que os nossos?

Sem entrar em questões técnicas, é preciso começar por ter em conta a distorção do que chamamos de população normal, ou, se quiserem saber o termo matemático, gaussiana. Tomemos como exemplo a altura de uma população. Calculamos a média. Em princípio, porque a população é homogénea, o que fica abaixo da média é sensivelmente igual ao que fica acima da média. Mas a população dos salários é assimétrica. Há muito mais abaixo da média (trabalhadores com menores qualificações) do que fica acima (quadros superiores). Esta assimetria é diferente na função pública e na actividade privada. Na primeira, pesam muito os administrativos intermédios e os técnicos e quadros intermédios qualificados. Na privada, pesam os infelizes milhares de operários e serventes da construção civil, com salário mínimo.

Nestas distribuições assimétricas, é muito útil decompor a amostra. Neste caso, por sectores sócio-económicos. Gostava de saber qual é a tal relação só para o grande contingente dos funcionários intermédios, administrativos e de actividade técnica reduzida. Palpita-me que é de cerca de 1. Mas gostava muito mais de saber se os quadros superiores e dirigentes da função pública ganham vez e meia a mais do que os colegas da privada!

27 maio, 2006

A lei da RMA

Finalmente, vamos ter uma lei da reprodução medicamente assistida (RMA). Era uma lacuna clamorosa, ao fim de tantos anos de prática da RMA em Portugal. Por um lado, parece-me óbvio que a RMA coloca questões éticas que não podem ficar ao critério dos médicos e das instituições. Por outro lado, a falta de lei pode, perversamente, ter efeitos mais constritivos do que uma lei até limitadora, porque os médicos e outros profissionais, sem orientação legal, podem ser tentados a uma auto-limitação defensiva.

Não conheço a lei e vou confiar no que tem sido escrito na imprensa. Uma lei deste tipo deve ser o mais consensual possível. É pena que, apesar de o PSD ter visto contempladas as suas objecções, tenha acabado por votar contra.

É neste sentido que aceito bem as limitações, que me desagradam, à aplicação da RMA. Já outro aspecto muito significativo não me parece ter sido motivado por divergências éticas e traduz provavelmente um certo atavismo. Trata-se da assimetria na aceitação de dadores. Posso compreender que a prevalência do psico-social sobre o biológico leve à rejeição da hipótese de doação dupla e que um dos gâmetas tenha de ser de um dos membros do casal (não falo em sentido legal). Mas não compreendo porque é que só pode ser admitida a doação de esperma e não a de óvulos a fecundar com o esperma do parceiro. Não li também qualquer referência à idade máxima para a RMA. Não é despiciendo, quando já lemos notícias de RMA em mulheres de mais de 60 anos.

A minha maior reserva vai para a impossibilidade de RMA em mulheres sós ou em vida lésbica, embora aceite ser um preço para a possibilidade de aprovação da lei. Tenho até uma posição pragmática, porque é uma inferiorização em relação a uma situação perfeitamente natural. Nada impede uma mulher nestas condições de engravidar, se puder, por meios naturais. Pode é não ser muito agradável para uma lésbica. A lei não devia impedir, no caso da RMA, o que pode ser obtido livremente por via natural. Ficam em desvantagem injusta as mulheres inférteis que não o podem fazer.

Um aspecto positivo desta lei, de grandes implicações para muitas outras questões, como o aborto, é a admissão da ideia de embriões inviáveis, que podem ser usados para investigação médica. Assim sendo, não me parece continuar a haver qualquer justificação para o atafulhamento de congeladores com embriões já com muitos anos. Por outro lado, e mais importante, é uma machadada num princípio extremo de respeito pela "vida humana" desde a fecundação. A questão do aborto vai ganhar muito com este precedente legal.

Finalmente, é notável que, desta vez, a AR tenha assumido as suas responsabilidades perante uma questão que suscitou uma petição com um número significativo de assinaturas. Sou adepto do referendo em questões de formulação simples e compreensível e sem grandes problemas técnicos. Parece-me evidente que, nestes termos, a RMA não é referendável.

20 maio, 2006

Leituras bíblicas

Missa é coisa própria dos católicos. Mas muitas vezes os não crentes são confrontados com elas: um casamento, o baptizado de um neto, uma missa de corpo presente. Nestes casos, deixam de ser apenas um acontecimento religioso e reservado, são actos de homenagem. É claro que um não crente não tem de saber participar, assiste com compostura e com respeito. Alguns padres é que podem não saber isto. Há anos, assisti à missa de corpo presente de um familiar muito querido. Obviamente, até por não saber, não disse as orações e não me benzi. O padre interrompeu a missa para dizer que quem não soubesse seguir uma missa devia abandoná-la.

Felizmente, tenho duas histórias pessoais em contrário, com padres por quem tenho hoje grande estima.

Os meus pais casaram-se com toda a modéstia dos tempos difíceis de S. Jorge, Açores, em plena guerra. A minha mãe nem um decente vestido de noiva conseguiu comprar. O seu grande gosto sempre foi compensar isto com uma grande festa, também religiosa como eles, das suas bodas de ouro. Todos os três filhos se empenharam ao máximo. Felizmente, a minha mãe sobreviveu por largos anos mas, para o meu pai, falecido pouco depois, deve ter sido a sua última ocasião feliz.

Hoje, descubro no espólio da minha mãe, com comoção, uma carta de ambos dirigida a mim e nunca entregue, sobre esse acontecimento, em que manifestam um agradecimento escusado por uma minha atitude nessa ocasião. Nada de especial. Manifestaram ao filho mais velho, não crente, o gosto por que fizesse a leitura da missa. Para mim foi um orgulho. Não crente, mas a religião é um componente da minha educação. O padre, católico progressista como eram os meus pais, dizendo-me que eu baptizado era filho da Igreja, ficou muito satisfeito por eu dar esse prazer aos meus pais, como se eu pudesse tê-lo negado. Concordei logo com a escolha dos meus pais, da primeira carta de João, sobre o amor e a sua transcendência.

Muitos anos depois, lembrei-me disto na missa de corpo presente da minha mãe. Então, fui eu que me dirigi ao padre, por minha iniciativa. Com a sua total concordância, voltei a participar, eu não crente, numa liturgia católica. Não gostei do texto do dia e perguntei ao padre se podia escolher outro, um texto do Livro da Sabedoria, o mais adequado à minha mãe. Desta vez, a escolha foi minha e o padre João, que conhecia bem a minha mãe, ficou muito satisfeito com essa escolha, feita por um não católico.

13 maio, 2006

Antes era melhor?

Volto a textos que apareceram na lista de correio electrónico do Pedro Aniceto, e que muito o devem ter agoniado no seu dever de as publicar.

1. "Em Portugal só houve um fascismo light"

A esta, o PA não resistiu e perguntou: qual é a sua régua para medir fascismos? Esqueçamo-nos, por exercício de discussão, do componente holocáustico do nazismo. Fica a haver grande diferença? Muito mais mortos de socialistas e comunistas nos campos de concentração hitlerianos, mas a partir de quantos mortos é que começa o fascismo? Para mim, de um único. O fascismo italiano até não foi tão assassino, não se compara aos milhares de mortos pela repressão franquista. Em Portugal, algumas dezenas: os mortos à fome e à doença do Tarrafal, Alex e Dias Coelho baleados em plena rua. E, já agora, o preso incógnito em Angola, na minha unidade de fuzileiros, entregue à Pide e cujos gritos só me permitiram o sono ao se extinguirem, não tendo eu compreendido logo que era porque o homem tinha morrido. E aqueles de cujo nome não me lembro agora, que se "suicidaram" lançados do terceiro andar da sede da Pide, de que o seu proprietário, o pobre "rei", quer fazer um hotel de luxo?

E as torturas? Afinal, hoje banais em Guantánamo, a privação do sono e a "estátua". Sabem o que isto é? Também há uma régua com medida para a tortura? Há torturas aceitáveis e inaceitáveis? E por onde andam hoje, neste pais de brandos costumes, São José Lopes, Sachetti, Passos, Cardoso e muitos mais? Talvez tenham filhos e sobrinhos a quem o 25 de Abril tenha dado a liberdade de poderem – e muito bem – despejar alarvidades na net, desde que haja sempre quem lhes responda, sem se acomodar com o pântano ideológico actual.

Também leio as desculpas ao salazarismo, como não-fascismo, por falta da encenação politica. Estupidez! Claro que a tivemos, com toda a encenação do império, mas também, nos anos 40, com as típicas paradas, Marcelo Caetano fardado à fascista, a Legião e a Mocidade Portuguesa, a exposição dos centenários (com a cumplicidade de "futuristas" como Almada). Se são filatelistas, vão ver os célebres selos "Tudo pela nação", desenhados pelo Almada. A diferença foi que tudo isto desapareceu nos perdedores, Alemanha e Itália, e Salazar compreendeu que os tempos tinham mudado. Mas, ainda em 1960, as comemorações henriquinas trouxeram a Portugal, num acampamento no Jamor e com muitos pagodes festivos, a nata das juventudes fascistas europeias.

Concluindo esta parte, vou ao essencial: fascismo é a violência contra os opositores mas também toda a castração da alma de um povo. Censura rigorosa e até estúpida, proibição da venda de livros que fazem parte do património cultural da humanidade, indoutrinação pela comunicação social oficial, demissões da nata dos professores intelectuais, proibição de exercício profissional de jovens licenciados, etc., etc. Isto é fascismo light?!

2. "Antes vivia-se melhor"

Esta é uma versão mais envergonhada do neo-salazarismo, que prefere omitir a politica, mas que ainda é mais facilmente desmontável, porque há números.

Vou falar só dos anos 60. Vivia-se muito bem! As pessoas demonstravam-no com os pés: engrossavam os novos bairros de lata de Lisboa e davam o salto para a França e a Alemanha. É claro que vivia muito bem, no obscurantismo, quem ia pela cartilha rural e de pároco de aldeia de Salazar: "se soubesses o que custa mandar, gostarias de obedecer toda a vida", "Deus, Pátria e família"; "o vinho dá de comer a um milhão de portugueses". Toda a gente da minha geração tinha estas coisas e muitos mais afixadas nas paredes dos nossos liceus.

Lia eu isto, no meu liceu, porque morava a dois passos. Mas lembro-me dos meus amigos residentes a 20 km da cidade que tinham que lá se hospedar porque, à hora do fim das aulas, já não havia camioneta para o Pico da Pedra. Neo-salazaristas de hoje, bem gostava de vos mandar para uma viagem ao passado!

E isto era para quem andava no liceu, obrigatoriamente só nas capitais de distrito. O resto, já esqueceram. Porque é que as campanhas rurais, depois do 25 de Abril, se centraram muito nas infra-estruturas básicas? Porque grande parte do nosso povo vivia em condições inimagináveis (que valia a pena dar a experimentar, em estilo "Quinta das celebridades", aos actuais escribas): sem electricidade, sem esgotos, sem telefone, água só do poço, caminhos de lameiro.

Os possíveis pais licenciados desses escribas provavelmente lhes dizem que, no seu tempo, tinham emprego assegurado. É verdade, mas esquecem-se de que, no meu tempo, esses estudantes universitários não ultrapassavam 20.000, hoje são quase 400.000. Isto chama-se democracia, também económica e social, e é por isto que o 25 de Abril ainda está no coração de muita gente.

Muito mais me apetecia escrever, mas não vale a pena gastar mais cera com tão ruins defuntos.

07 maio, 2006

E outra nota de fim de semana

Um artigo de Jorge Braga de Macedo (JBM) sobre Galbraith, no Expresso, fez-me lembrar uma velha conversa do agudíssimo Corino de Andrade.
"Na ciência e na vida académica, continuamos os comerciantes do sec. XVI [JVC: eu acrescentaria, e o Oliveira de Figueira do Tintim]. Vamos a um congresso e trazemos uma ideia e um novo conhecido sem significado. Regressamos e usamos isto internamente para efeitos curriculares. Voltamos a outro congresso, com efeito multiplicador, em que essa informação anterior e esse contacto nos granjeiam outros, e assim sucessivamente".
O artigo de JBM é muito à nossa moda. É uma evocação sobre a importância da obra de Galbraith, mas misturada com recordações das suas amizades, das viagens conjuntas, da mulher de Galbraith, de algumas coisas que dão a entender que se trata de confidências a um amigo português muito especial. Em Portugal, não é necessário ser-se alguém, mas amigo de alguém, JBM de Galbraigth, o inefável Espada de Karl Popper. Não se vale por si mas pelos amigos, mesmo que só auto-apregoados e de impossível confirmação.

06 maio, 2006

Notas soltas

As notas de hoje ocorrem-me pela leitura do Público de ontem.

1. A crise no Irão está a originar artigos, notícias e colunas dando uma no cravo e outra na ferradura. Insiste-se na necessidade de conversações bilaterais, em posições e sanções da ONU. Mas, pelo meio, vêm as ameaças de intervenção militar. Começo por deixar claro que não simpatizo nada com o regime iraniano e que não vou na conversa, à PCP ou BE, de que o programa nuclear "pacífico" do Irão não representa nenhuma ameaça à paz mundial. Mas lembro o Iraque. Ninguém aprendeu? E, comparado, o Irão, militarmente, não é pêra doce.

A acompanhar uma notícia, o jornal publica uma infografia de origem americana com alvos, armas, aviões. É para, subliminarmente, irem preparando os leitores?

2. Foi lançado um livro de Livro de Maria Inácia Rezola que desmonta algumas ideias feitas sobre o 25 de Abril, nomeadamente sobre a "prepotência" do Conselho da Revolução. Há uma passagem da notícia que me interessou:
"O livro revela ainda "a descrença de Álvaro Cunhal no V Governo provisório. Desde muito cedo que ele [o histórico secretário-geral do PCP] ensaiou uma demarcação de Vasco Gonçalves para se aproximar dos militares moderados", frisou ainda António Reis. "
É verdade e posso testemunhá-lo. Tenho mesmo boas razões para supor que, para além destes contactos de "mensageiros de base", houve conversas ao mais alto nível, mas não posso garantir. Também é sabido que, no verão quente, regressado da sua hospitalização – ou férias, já não me lembro bem – em Moscovo, Cunhal "puxou as orelhas" aos seus camaradas dirigentes, alinhados entretanto na frente esquerdista. Mais ainda, os responsáveis por células foram instruídos para transmitirem moderação em relação à rejeição de base de um possível e frustrado governo Fabião. Mas também é verdade que Cunhal jogou em dois tabuleiros e que os conhecidos membros do V Governo comunistas ou próximos nunca o teriam sido sem a sua concordância.

Daí também a prudência do PCP no dia 25 de Novembro.

3. Na última página, vem a notícia de uma senhora de 63 anos que está grávida, por inseminação artificial, depois de um tratamento que lhe repôs (?) a sua fisiologia pré-menopáusica. É por estas e outras que hoje há tanta desconfiança pública em relação às magníficas conquistas da biomedicina reprodutiva. São médicos e cientistas, frequentemente, os piores malfeitores à sua ciência e arte. Não brinquem com a natureza!

4. Ainda na última página, fez-me pensar a crónica habitual de Vasco Pulido Valente. Como de costume, niilista, derrotista, sobranceiro. Mas não será que este retrato secular de Portugal que ele e outros (Barreto, Mónica, Bonifácio, etc.) transmitem não será visto, daqui a cem anos, como hoje lemos os escritos da geração de 70? Em parte sim. Lamento prensar que, nesse futuro, talvez ainda se continuem a reconhecer como reais, com a mesma actualidade, Gouvarinhos, Acácios, Pachecos, Abranhos, Cavalões, até (agora mais na moda) Salcedes, acrescentados dos seus sucessores dos tempos que correm. Também os iluminados que não lutam e que são objectivamente cúmplices, Carlos Eduardo, João da Ega, Fradique, Craft (mas, enfim, este era estrangeiro).

No entanto, há uma grande diferença, a da intervenção, sua forma e qualidade. É certo que a intervenção prática da geração de 70, exceptuando as de Antero, quando a doença lho permitia e a passagem malograda de Oliveira Martins pelo governo, foram fugazes. No entanto, mesmo em relação aos outros, lembremo-nos que actuaram pela positiva, principalmente como escritores, obviamente que com realce para Eça. As Farpas, os Maias, Fradique não são apenas um choro, revelam autores que têm um sonho e uma atutude de progresso, que não precisam de formular explicitamente. Ganharam autoridade intelectual para que muita gente se interesse pelas ideias de progresso que saltam da critica. Os nossos actuais derrotistas têm a mesma autoridade intelectual?

03 maio, 2006

O que é um intelectual?

Há tempos escrevi no meu Bloco de Notas um texto, "Pensadores, precisam-se", em que aludi á confusão que entre nós se faz entre pensador e simples colunista. Volto ao assunto, e desta vez, porque certamente há leitores que não lêem todos os meus três "blogues", vou escrever isto tanto no Bloco de Notas como nos Apontamentos, porque também tem muito a ver com a educação superior.

Entre vários exemplos de pensadores da minha especial predilecção, referi então Thimoty Garton Ash. É dele um artigo recente para que chamo vivamente a atenção: "Are there British intellectuals? Yes, and they've never had it so good". Vale bem a pena ler também as dezenas de comentários, de alta qualidade. Para abrir o apetite, transcrevo parte da definição de intelectual, segundo TGA:
"Last, and most important, is the characterisation of a cultural role. Collini attempts to pin this down in a careful definition. An intellectual, in this sense, is someone who first attains a level of creative, analytical or scholarly achievement and then uses available media or channels of expression to engage with the broader concerns of wider publics, for some of which he or she then becomes a recognised authority - or at least a recognised figure and voice. My own attempt at defining the role of the intellectual, in a debate with Czech intellectuals some years ago, was not dissimilar: "It is the role of the thinker or writer who engages in public discussion of issues of public policy, in politics in the broadest sense, while deliberately not engaging in the pursuit of power." That last normative caveat seems to me very important, though it is rejected by intellectuals such as Vaclav Havel who have gone into politics with a large P.

Since the 1980s we have come to describe such persons as "public intellectuals", a term imported from the US - as was "highbrow". But if one means by "intellectual" someone who plays the role just described, then "public intellectual" is a pleonasm while "private intellectual" is an oxymoron. A hermit or recluse may be "a bit of an intellectual", but engagement with a wider public is the defining feature of an intellectual in this sense. The story is complicated by the fact that you may reach a wider public only after your death. Only 11 people attended Karl Marx's funeral, but he became one of the most influential political intellectuals of all time. There are, so to speak, posthumous publics."
Reparem na frase "while deliberately not engaging in the pursuit of power". Se entendermos "power" em sentido lato, influência política, clubes de elogio mútuo, narcisismo, favoritismos cruzados, dependência dos vários poderes, etc., então volto ao que escrevi sobre muitos dos nossos opinadores.

A terminar, mais uma vez o agradecimento à DK, infatigável em fornecer-me informação importante.